Anthony Hopkins em Uma Vida - A História de Nicholas Winton (Reprodução)

Filmes

Crítica

Uma Vida se disfarça de filme conforto, mas convence mesmo ao cutucar feridas

Crença do filme na decência do humano comum vacila diante do cinismo contemporâneo

30.06.2024, às 08H01.

Faz menos de um mês que, na minha crítica do italiano Eu, Capitão, indicado ao Oscar 2024 de Melhor Filme Internacional, eu defini o longa de Matteo Garrone como um empreendimento covarde e cínico por falar da crise de refugiados sem “entrar na arena suja do que pode acontecer com eles uma vez que chegam ao seu destino”. Quem diria, então, que a resposta perfeita a essa hesitação europeia de se culpabilizar pela miséria dos outros viria de um draminha britânico de Segunda Guerra Mundial, inspirado em uma história real que virou sensação no país após ser revelada em um talk show sensacionalista vespertino? 

Uma Vida - A História de Nicholas Winton traz os ótimos Anthony Hopkins e Johnny Flynn revezando o papel título, um banqueiro britânico que viajou à Tchecoslováquia logo antes da invasão nazista e ajudou um grupo de voluntários a salvar mais de 600 crianças da guerra, arranjando transporte via trem para elas até o Reino Unido e encontrando famílias dispostas a hospedá-las em caráter temporário. Modesto, Winton fez pouco de suas contribuições até meados dos anos 1980, quando o programa That’s Life usou um álbum de recortes que ele tinha guardado por décadas para encontrar as crianças que havia salvado, encenando a reunião entre elas e Winton ao vivo na TV.

O roteiro de Lucinda Coxon (A Garota Dinamarquesa) e Nick Drake (Romulus, Meu Pai), portanto, se reveza entre dois tempos, revelando tanto a campanha de Winton para salvar as crianças durante a Guerra quanto a velhice do banqueiro, logo antes de sua célebre aparição televisiva. Trata-se de uma escolha natural e até necessária para que o apelo emocional do filme se concretize em tela - o público britânico conhece Winton do That’s Life, e rever esse momento como interpretado por Hopkins é o chamariz da produção. O texto de Uma Vida se aproveita dessa necessidade, contudo, para cutucar a ferida de uma nação (e, talvez, um continente) que se afastou a passos largos da atitude de solidariedade e decência da qual tanto se orgulhava em meados do século XX.

O contraste está ali desde as primeiras cenas estreladas por Hopkins, nas quais ele esbraveja contra notícias no rádio sobre as decisões conservadoras do governo de Margaret Thatcher enquanto conta as moedinhas que angariou para sua mais recente empreitada caridosa. Dali em diante, as idas e vindas temporais de Uma Vida se estabelecem como uma forma de ilustrar a desconexão entre Winton, com sua crença irrestrita da generosidade do cidadão comum, e o tempo cínico no qual ele vive. Do jornalista que só se interessa pela história quando ele se torna um fenômeno televisivo, passando pela aristocrata que “compra” seu livro de recortes e o programa de auditório que o engana a fim de fabricar um momento emocionante, o Winton de Hopkins transita em um mundo de interesses egocêntricos no qual ele não se encaixa.

E, se nas cenas de 1940 o diretor James Hawes (Slow Horses, Black Mirror) toma todo o cuidado para se alinhar ao padrão acadêmico britânico - este poderia ser muito bem um telefilme da BBC, na maior parte do tempo -, ao abordar as porções oitentistas da trama ele encontra formas interessantes de sublinhar esse deslocamento de personagem e cenário. Com o diretor de fotografia Zac Nicholson (A História Pessoal de David Copperfield), Hawes filma um Hopkins mais hesitante e prostrado do que nunca como se ele fosse uma peça fora de lugar na sua casa impecavelmente limpa, com gramado manicurado e piscina no quintal. É um trabalho sutil - um enquadramento desconfortável ali, um corte súbito para uma fogueira improvisada acolá -, mas eficiente como provocação.

De certa forma, a crônica desse desajuste funciona em mais de um nível. Na superfície, ela abre espaço para excepcionalizar Winton como sujeito inspirador, farol de idealismo e caridade para os tempos contemporâneos, mas também remanescente de uma época idealizada em que esses valores tinham mais peso. É o trabalho de qualquer draminha biográfico chapa branca (este é até inspirado em um livro da filha do biografado, Barbara Winton): engrandecer os atos do protagonista, e - em função da aliança que o público naturalmente sente com o personagem principal de qualquer história - massagear o ego do espectador que se vê alinhado aos seus ideais, embora talvez não os coloque em prática tanto quanto ele.

Em outro nível, no entanto, há uma deterioração mais profunda que fica óbvia no contraponto entre a campanha bem-sucedida de Winton durante a guerra (inteiramente predicada na gentileza de estranhos, que nunca seriam devidamente reconhecidos por isso) e a produtificação absoluta de sua personalidade e de seus feitos décadas depois. Dessa deterioração Uma Vida não exatamente nos absolve, e certamente não absolve o país em que foi produzido - e, só por isso, já é um filme mais corajoso do que a maior parte de seus contemporâneos.

Nota do Crítico
Ótimo