Um dos momentos mais impactantes de Vidas Passadas acontece quando Nora (Greta Lee) chega a um parque em Nova York para reencontrar o seu amigo de infância Hae Sung (Teo Yoo), que não vê há 24 anos, desde que a família emigrou de Seul. Assim que os dois se aproximam, diante de uma parede de concreto branco trabalhada em padrões rústicos, o filme corta para uma outra cena que já vimos antes: Nora e Hae Sung, ainda pequenos, brincando em meio a esculturas gigantes em um parque na capital sul-coreana. Escondidos atrás das cabeças enormes das obras, apenas seus rostinhos visíveis pelos buracos delas, os dois estão nas mesmíssimas posições em que se encontram tantas décadas depois, a um oceano de distância.
É uma rima visual executada com excelência ímpar pela diretora Celine Song, com a ajuda inestimável da fotografia leitosa de Shabier Kirchner (Small Axe), que equaliza as luzes, texturas e atmosferas de metrópoles tão distantes; e da montagem arguta de Keith Fraase (Cavaleiro de Copas), sempre atento para o timing dos significados que a cineasta quer colocar em tela. Mas, conforme a história de Vidas Passadas vai se desenhando, fica claro que este momento não é só uma costura visual entre passado e futuro, um paralelo fácil das vidas desses personagens: é todo o ponto do filme, encarnado em uma imagem.
Vidas Passadas, no papel, é um daqueles filmes em que “nada acontece”. A visita de Hae Sung a Nova York, o seu reencontro com Nora, não muda para sempre a trajetória da vida dos dois, e nem os move de forma imediata para tomar decisões radicalmente transformadoras. Mas o que é que esperávamos que acontecesse, afinal? Arthur (John Magaro), o marido de Nora, até brinca com isso ao comentar que, caso ela largasse a sua vida nos EUA para ficar com o amor de infância em Seul, a história daria um belo melodrama - e ele seria o vilão, é claro, o “marido branco que se mete no meio dos amantes predestinados”.
Song, no entanto, não está contando esse tipo de história. A forma como o seu roteiro nega grandes quebras dramáticas, se afasta da narrativa da retomada do grande amor, inclusive, é parte do exercício que ela propõe com o filme. Vidas Passadas cria um mundo adulto em que as grandes escolhas que os personagens poderiam fazer já foram feitas, em que todos os sujeitos dramáticos já sabem muito bem “onde foram parar, e onde deveriam estar”. A jovem Nora e o jovem Hae Sung, vistos apenas pelas frestas das cabeças gigantes das esculturas em Seul. O que acontece quando pessoas sólidas, de concreto, se encontram com outras pessoas que as conheceram quando não eram nada disso?
Para Vidas Passadas, o que acontece é um acerto de contas entre o potencial do passado e a realidade do presente, mas esse é um embate em que a imaterialidade essencial de um não tem chances de derrotar a materialidade essencial do outro. Song mina com eficiência as pequenas tragédias que nascem desse confronto, no entanto, pontuando com delicadeza no texto a forma como os sonhos de dramaturga de Nora diminuíram (ela queria ganhar o Nobel, depois o Pulitzer, e agora, quem sabe, o Tony - mas não fica pensando nisso o tempo todo), ou como as trajetórias emocionais dos dois protagonistas seguiram arcos opostos de fragilização e solidificação dentro de ideias de masculinidade e feminilidade.
Isso tudo está no diálogo, mas é também nele que o filme encontra as suas fragilidades mais óbvias. Há algo de massagem de ego em Vidas Passadas, especialmente em como elogia constantemente a ambição de Nora, avatar da diretora, e seu abraço de valores ocidentais após a emigração. Adorada por dois homens para os quais ela significa coisas opostas (“aquela que foi embora” e “aquela que ficou”), ela acaba fazendo por ambos o mesmo trabalho de expandir horizontes, “tornar a vida maior” do que ela pode parecer. É a parte mais superficial do texto, especialmente no diálogo climático entre Nora e Hae Sung, e também contradiz um pouco a ode que o filme faz… bom, à pequenez da vida.
Até por esse ligeiro desacordo de Vidas Passadas consigo mesmo, concentrado na personagem principal, Greta Lee nem sempre consegue suplantar certa artificialidade na sua construção de Nora. Ela tem grandes momentos, especialmente quando precisa esconder emoções enormes em gestos pequenos: desejo em um olhar de soslaio, resignação em uma maneira de andar, incerteza em uma forma de se sentar. Mas, no fim das contas, é Teo Yoo quem rouba a cena com um desenho muito mais íntegro, e imponente, da fragmentação masculina diante de pressões internas e externas. É um arco de descoberta e sufocamento da própria fragilidade que acerta no coração de uma experiência masculina quase universal.
E é justo na universalidade, na forma como escolhe expressá-la, que Vidas Passadas encontra força para superar seus elementos mais vacilantes. Song e seus colaboradores são insistentes e consistentes na sua priorização de ideias visuais que digam algo, seja em como estão sempre realçando a geografia das cidades onde a história se passa (há algo mais concreto sobre o que somos, afinal, do que o lugar onde moramos?), seja na tendência de acompanhar as andanças dos personagens com movimentos horizontais de câmera - da direita para a esquerda quando eles buscam ou relembram algo do passado, da esquerda para a direita quando eles se encaminham para seus futuros, inclusive no final. A linguagem visual universal da linha do tempo, da escrita e da leitura.
Vidas Passadas se posiciona assim como um pedaço de cinema nascido e moldado por uma intenção expressiva potente. Seu entendimento da linguagem cinematográfica é tão cristalino quanto a sua visão da solidez imutável e agridoce da vida adulta. E, se lhe falta um pouco de autoconsciência para eliminar algumas tendências de glorificação própria, quem pode culpá-lo? Isso também é bem adulto da parte dele, afinal.