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Crítica

Wonka desafia o tédio do cinema-indústria e relembra a arte de sonhar acordado

Paul King triunfa ao delinear bem as sombras das quais que sua fantasia precisa escapar

06.12.2023, às 06H00.
Atualizada em 14.06.2024, ÀS 09H42

Os vilões de Wonka, prequel da A Fantástica Fábrica de Chocolate que trata da juventude de Willy Wonka (Timothée Chalamet) e do começo de seu império confeiteiro, são os três caricatos mestres-chocolateiros que dominam a Galeria Gourmet, centro comercial da cidade onde o jovem Willy chega para tentar realizar suas ambições empreendedoras. Interpretados por um trio de comediantes britânicos afiados, mais conhecidos por seus trabalhos na TV (Paterson Joseph, de Peep Show, está especialmente brilhante como o malévolo Slugworth, que só carece de um bigode para enrolar nos dedos), eles têm uma reação curiosa após seu primeiro encontro com o protagonista.

Como o próprio Slugworth explica, não é (só) que eles achem Willy talentoso e uma ameaça ao seu monopólio da indústria confeiteira, mas a forma como Willy cria chocolates é diretamente antitética ao que eles acreditam, para o bem de suas próprias operações comerciais: que um bom chocolate deveria ser simples, elegante, padronizado - e, como o filme deixa claro depois, tão diluído que mal se qualifica como chocolate. Com suas invenções mágicas e coloridas, criadas a partir de ingredientes multiculturais e predicadas muito mais nos sentimentos que causam ou evocam, o jovem Willy é uma ameaça porque pode mostrar aos clientes da Galeria Gourmet que eles poderiam ter algo a mais.

Difícil espantar a sensação, depois de assistir às quase 2h de Wonka, de que este é também o manifesto do diretor e co-roteirista Paul King. Já em seus dois filmes da franquia Paddington, que se tornaram improváveis clássicos cult, o cineasta mostrava que seu dom criativo estava em construir mundos criados com óbvia afeição pela arte envolvida neles, o que se traduzia na atenção aos detalhes e na vontade explícita, nem um pouco cínica, de expressar algo positivo dentro desse universo ficcional. São filmes que triunfaram porque se opuseram à manufatura automatizada do cinema-indústria que, antes concentrado em Hollywood, agora contamina o mundo todo na busca pelo “simples, elegante, padronizado e funcional”, na valorização daquilo que é aceito acima daquilo que encanta.

Wonka é herdeiro desse impulso no sentido que se estrutura como cinema-extravagância e, na sua defesa passional do artista da extravagância que elege como protagonista e herói, acaba também defendendo o direito inato que todo filme (e toda obra de arte) tem de… bom, ser extravagante. Como musical, por exemplo, ele carrega traços dos clássicos hollywoodianos do gênero nos anos 1940 e 1950, de sua canção introdutória que vai do melancólico ao dançante em poucos minutos à coreografia que oscila entre grandes movimentos geométricos e pequenos toques de sapateado.

As canções originais de Neil Hannon (da banda The Divine Comedy) acertam ao se aproximar do trabalho clássico de Leslie Bricusse e Anthony Newley para o Fantástica Fábrica dos anos 1970, com seus pianos sonhadores e suas melodias agradavelmente circulares. Como vocalista e performer principal da maioria dessas composições, Timothée Chalamet não vacila na afinação nem nos passos de dança, mas - ainda mais importante - integra esses aspectos técnicos a uma atuação que caminha espertamente na linha difusa entre charmoso e intimidador que sempre foi a chave para interpretar Willy Wonka.

O Wonka deste filme é um rapaz ambicioso, plenamente ciente de que tem o poder único de dar asas a sonhos em forma de chocolate, e cuja posição anti-establishment talvez seja mais guiada por interesse próprio (e por um buraco de carência impreenchível que existe dentro de sua alma) do que por puro altruísmo. Chalamet é excelente em expressar essas sombras, até mesmo em justificar emocionalmente a sua existência, e como elas se traduzem em luz quando os planetas se alinham da forma correta para aqueles que estão ao redor dessa figura poderosa. Poder benevolente ainda é poder, nos diz Wonka, e a prerrogativa do poder é tirá-lo das mãos de alguém.

De certa forma, esse é também o dilema de Wonka, o filme. Ele é, afinal, uma adição tardia a uma franquia de entretenimento absurdamente lucrativa, na qual um grande estúdio de Hollywood investiu centenas de milhões de dólares, e que portanto tem algumas obrigações comerciais a cumprir. Por todo o seu espetáculo imaginativo, e por toda a ressonância emocional de sua história sobre o valor da arte como sonho, como apoio em meio a um mundo cruel, Wonka ainda precisa amarrar a sua rendição íntima do clássico “Pure Imagination” (golpe baixo!) ao nascimento da fábrica de Willy e à possibilidade muito real de futuras continuações.

É uma pequenez necessária, que não consegue manchar um filme grandioso em todos os outros aspectos.

Nota do Crítico
Ótimo