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Cruella, Malévola, Gaston… A Disney está romantizando seus vilões?

Nova série de A Bela e a Fera e lançamento de filme com Emma Stone reacenderam o debate

01.07.2021, às 14H17.

No último dia 15 de junho, a Disney revelou detalhes sobre a já anunciada série derivada do live-action de A Bela e a Fera, de 2017. Além de ser estrelada, como já sabíamos, por Gaston (Luke Evans) e LeFou (Josh Gad), ela também desvendará um pouco do passado da Feiticeira que amaldiçoou o príncipe Adam (Dan Stevens) a viver como a Fera - uma figura que sempre teve ares misteriosos nas outras versões do clássico.

A novidade prontificou reações apaixonadas nas redes sociais, incluindo um contingente de fãs que acusou a Disney de continuar com sua “agenda” de romantização, ou no mínimo suavização, de seus vilões. O projeto seria, nesta visão, descendente direto de Malévola e Cruella, filmes que repaginaram grandes antagonistas de clássicos animados do estúdio, posicionando-as como figuras injustiçadas e, ao menos para alguns, “compreensíveis” em seus atos maldosos.

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É verdade que a Disney anda investindo em projetos focados em seus vilões, mas isso não é surpresa se pensarmos pelo lado puramente mercadológico da coisa. Não só os vilões do estúdio sempre foram populares entre o público (quase tão populares quanto os heróis!), como eles são terreno naturalmente fértil para a criação de novas histórias, já que muitos não tiveram suas origens exploradas nos filmes clássicos - e a Disney está sempre louca para lucrar um pouco mais em cima de marcas já estabelecidas.

Essa falta de exploração dos vilões, é claro, era calculada. Em outros tempos, ainda mais do que hoje, a Disney gostava que suas histórias fossem simples confrontos de bem contra o mal, sem nada da complexidade moral da realidade, ou qualquer consideração para o fato de que todo mundo tem uma história. Na Disney, só o herói tinha uma história, porque era só ele que deveríamos entender.

Não há nada de intrinsecamente errado nessa forma de contar histórias. Às vezes, um vilão sem propósito e sem origem funciona bem como agente do caos, e os efeitos dele no herói são mais do que o bastante para criar uma narrativa envolvente (Coringa, estamos olhando para você). Mas é importante entender que essa não é a única maneira de construir um antagonista.

Falta a esse debate, acredito, um pouco de nuance. Falta considerar que, ao entender a origem da loucura de Cruella (ou do Coringa, aliás, como mostrou o filme de 2019), a fundamental imoralidade dos seus atos não se apaga. Um vilão com motivos, um vilão que acredita estar certo e justificado em sua vilania, não deixa de ser um vilão, não se torna automaticamente um personagem para o qual devemos torcer, ou que devemos sagrar como ídolo - ele só se torna um vilão bem escrito.

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Um exemplo muito popular disso era House of Cards, antes do escândalo que a tirou dos trilhos (justificadamente) na última temporada. Na série da Netflix, Frank e Claire Underwood não eram heróis, nem mesmo anti-heróis - que são, essencialmente, figuras capazes de sentir remorso pelo mal que fazem. Eles eram vilões irredimíveis, que mesmo assim estavam no coração da série, e que, por causa disso, eram também inegavelmente humanos. Compreensíveis no sentido original da palavra, porque éramos capazes de compreender quem eles eram.

Ao mesmo tempo, é claro que parte da revolta contra os vilões humanizados da Disney tem a ver com a nostalgia provocada pelos clássicos do estúdio em grande parte do público. Não é só que é difícil aceitar uma Cruella humanizada, é que é difícil aceitar qualquer Cruella que não seja aquela do 101 Dálmatas original, de 1961 - e aquela Cruella era irrestritamente, inexplicavelmente má.

Para os que se sentem traídos por qualquer reinvenção de personagens como ela, talvez os remakes live-action da Disney simplesmente não sejam o produto certo. Por todo o seu cinismo corporativo (e este, sim, pode e deve ser criticado), projetos como Cruella, Malévola e a nova série de A Bela e a Fera são também herdeiros de uma tradição provavelmente tão antiga quanto o próprio hábito humano de contar histórias - a de reimaginá-las, recontá-las, e criar versões diferentes delas.

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Na Grécia antiga, autores respeitados ofereciam relatos diferentes das mesmas tramas mitológicas, filtradas por suas sensibilidades e caprichos. Na Hollywood clássica, diretores como Alfred Hitchcock refaziam nos EUA filmes que já haviam lançado em seus países natais, e clássicos mudos eram repensados para a era falada. Nas histórias em quadrinhos, só a tradição de resetar linhas do tempo e reimaginar origens de heróis conseguiu mantê-los em publicação por tanto tempo quanto estão hoje.

Talvez a questão seja só a de desapegar da noção de que existe uma versão original de personagem X ou Y. Personagens são tão maleáveis e adaptáveis quanto as pessoas que estão contando suas histórias em determinada janela temporal. Vilã ou não, a Cruella do filme com Emma Stone não é a Cruella do clássico animado, ou a do filme com Glenn Close - e está tudo bem. Há casacos de dálmatas o bastante no mundo para todas elas.