Império dos Sonhos (Inland Empire), o mais recente trabalho do cineasta surrealista David Lynch, foi apresentado no Festival de Veneza de 2006, onde o diretor foi premiado com um Leão de Ouro pelo conjunto da obra. Na época, como de costume, o filme dividiu a opinião da crítica especializada. Durante a entrevista coletiva do filme, um repórter norueguês genuinamente preocupado chegou a perguntar se o diretor estava se sentindo bem mentalmente. Com bastante bom humor, Lynch disse: "Estou muito bem", o que provocou a reação de um outro jornalista italiano: "ele está pronto para vestir uma camisa de força".
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Polêmicas à parte, Lynch nunca gostou de falar sobre as histórias de seus filmes. Oriundo das artes plásticas, para ele, seu trabalho deve ser analisado sem influências. Cada espectador tem o direito de achar o que quiser e tirar suas próprias conclusões. Realmente, procurar uma explicação racional para cada detalhe de Inland Empire é diminuir a experiência metafísica que o filme pode proporcionar. A única dica dada por Lynch sobre o filme foi: "é a história de uma mulher com problemas". Uma frase enigmática para representar mais de 3 horas de projeção em que o roteiro confronta todas as convenções da narrativa clássica.
O filme foi todo registrado em câmera digital, o que lhe proporcionou inúmeras possibilidades. Ele pôde, por exemplo, filmar dezenas de cenas conforme sua vontade, sem os pesados custos. Ao mesmo tempo pode também usar uma penca de efeitos especiais para ilustrar suas idéias. E foi assim pelos mais de dois anos de produção, já que ele e os atores trabalhavam sem um roteiro pronto, fluindo conforme a inspiração que ia aflorando. Depois dessa magnífica experiência, Lynch chegou a declarar que nunca mais iria trabalhar com película.
O fanatismo do cineasta com a nova descoberta digital atrasou o lançamento da produção no resto do mundo. Ele exigia que um projetor digital específico fosse utilizado para que o público pudesse ter a experiência correta com as cores e suas granulações. Lynch conseguiu isso, pois tinha os direitos sobre a distribuição do filme. Mesmo no mercado estadunidense, Lynch manteve suas convicções.
O filme foi lançado em DVD nos Estados Unidos, também desafiando as normas de distribuição. Antes de começar, surge na telinha uma série de instruções de como a TV deve ser ajustada. A versão é dupla e acompanha extras interessantes. Tem 74 minutos a mais de duração, que estão à parte, como se fossem cenas cortadas durante a montagem final. O interessante é que essas cenas estão editadas, musicadas e poderiam ser inseridas em qualquer parte do filme. O DVD ainda trás mais de 40 minutos de depoimentos de Lynch divididos em assuntos sobre suas intenções em Inland Empire. Mas não espere explicações sobre o filme. Suas declarações são sobre as escolhas técnicas.
Todo esse extremismo só aumenta ainda mais a curiosidade do espectador. Analisar Inland Empire vai depender da bagagem cultural e as crenças de cada um. O filme pode ser visto como a terceira parte de uma trilogia envolvendo Hollywood e o mundo do cinema iniciada com A Estrada Perdida e continuada em Cidade dos Sonhos. Percebe-se a paixão de Lynch pela Meca do cinema e as conseqüências desse entusiasmo. Lynch apresenta uma corrupção ainda mais subversiva sobre Hollywood em Inland Empire. São cenas de ensaio, estúdios e da constelação de estrelas pelas ruas de Los Angeles. Isso fica claro no anúncio dito pelo personagem interpretado por William H. Macy: "onde as estrelas fazem os sonhos, e os sonhos fazem as estrelas". Mas esse idílico pensamento tem seu preço. As mulheres podem ser brutalizadas em Hollywood. Quantas chegam todos os dias a Los Angeles sonhando com o estrelato e acordam para uma realidade de prostituição nas ruas?
Lynch cria um universo em que dois mundos se confrontam e se completam. Ele já tinha explorado isso em Eraserhead, quando pediu na época para sua equipe técnica assistir a Crepúsculo dos Deuses, do cineasta Billy Wilder, pois queria o mesmo visual. O mundo mágico do cinema serve como um portal para analisar os sentimentos mais obscuros da humanidade. Crimes de paixão, ambição e desejo são recorrentes. Mesmo as referências aos imigrantes poloneses em Inland Empire flertam com a origem de Wilder. Uma homenagem digna a um mestre da sétima arte.
O próprio título deste novo trabalho sugere essa metalinguagem. No passado, significava a parte rural e desértica entre dois condados proeminentes em Los Angeles. Hoje em dia a região está desenvolvida. Mas a noção de tempo e espaço não possui o mesmo sentido para Lynch. Passado, presente e futuro estão conectados intrinsecamente em sua cabeça. Ao mesmo tempo a expressão "inland empire" indica a região do subconsciente da mente. Um local onde sonhos e memórias se confundem. Para explorar, basta apertar os botões certos. Mas todas essas idéias são um pequeno prenúncio do que ainda está por vir. Logo na primeira cena, uma luz invade a escuridão, como se um projetor fosse ligado. Uma voz oriunda de um gramofone anuncia "AXXoN N., a peça teatral radiofônica mais longa da história...". Uma expressão que servirá de portal durante a narrativa.
A trama começa com um casal com os rostos fora de foco, como estivessem em um sonho erótico. Uma garota polonesa chora vendo um programa de TV, chamado "Lost Girl" ("Garota Perdida"). Uma família de coelhos interpreta um típico sitcom televisivo. Uma famosa atriz de Hollywood, Nikki (Laura Dern), está prestes a conseguir o projeto que poderá revitalizar sua carreira. Casada com um homem (Peter J. Lucas) possessivo, poderoso e misterioso, ela recebe a visita de uma vizinha cigana (Grace Zabriskie fantástica) com um sotaque europeu, que conta uma parábola de como o diabo foi solto no mundo. A mulher revela alguns segredos sobre a noção de tempo e o filme. Na tal produção, Nikki irá contracenar com Devon (Justin Theroux), um ator famoso pelas suas conquistas amorosas, mas que é alertado a não se meter com Nikki. O diretor do projeto é Kingsley (Jeremy Irons) e seu assistente é Freddie (Harry Dean Stanton), que não tem boas informações sobre o filme. Conta ele que o roteiro de "On High in Blue Tomorrows" parece estar amaldiçoado. É uma refilmagem de um projeto alemão, chamado "47" , baseado em um conto cigano polonês que não chegou ao final, pois os atores morreram da mesma forma que os personagens.
As filmagens se iniciam e Nikki começa a sentir-se confusa. Ela assume a personalidade de sua personagem, Susan Blue, e começa a chamar Devon de Billy Side, seu personagem no filme. A partir daí, presságio, delírio e memória repressiva surgem. Lynch começa a explorar seus temas preferidos como o amor, ódio, sexo, traição, violência e identidades múltiplas. Tudo isso corrobora com seu estilo de filmar. Cenas extremamente naturalistas se chocam com a artificialidade cênica e imagens destorcidas. Sua câmera percorre quartos escuros decorados no estilo dos anos 50, procurando passagens para outros universos. A iluminação atmosférica contrasta com lâmpadas fluorescentes, fumaça e cortinas vermelhas, entre outros elementos. Os close-ups acontecem. Uma aura de terror surge sustentada em uma estética noir em que o cineasta flerta com gêneros como o erótico e o musical. Esse último, não só através da trilha sonora com canções e efeitos sonoros, mas também com clipes envolvendo a narrativa. Até o silêncio tem papel de destaque no universo lynchiniano. Podemos perceber o porquê de Lynch ser um adepto da meditação transcendental. Não existem mistérios em nosso universo. É necessário perder a ilusão que podemos encontrar sentido em todas as coisas.
Nikki começa sua jornada em uma metamorfose de múltiplas personalidades. Isso pode ser encarado como uma metáfora para a criação artística, na qual a vida pessoal do profissional se perde dentro da própria arte. Nikki se torna uma dona de casa de classe social baixa (possivelmente na região chamada de "Inland Empire", a oeste de Los Angeles) e uma mulher agressiva por causa dos abusos sofridos por homens, entre outras transmutações. Segundo a cigana do começo da narrativa, uma menina se perdeu no mercado, semelhante a várias atrizes em Hollywood. Nikki é ao mesmo tempo protagonista e espectadora.
Essa dualidade recebe outras camadas, devido à ótima interpretação de Laura Dern. É admirável a forma que ela e Lynch se completaram nesse projeto. Acusado de misógino por filmes como Veludo Azul e Coração Selvagem, Lynch desconstrói essa crença com Inland Empire. Sua abordagem flerta com o feminismo. Provando que definições rígidas não acompanham sua personalidade. Se diretor Pedro Almodóvar é considerado um profundo conhecedor dos conflitos internos de uma mulher. Lynch investe em um caminho mais obscuro. Ele esmiúça o subconsciente e o inconsciente feminino. Explora os atos falhos e sua psiquê. A cada nova passagem em busca de uma saída, vemos Laura Dern se transformar em diversas representações, em uma espécie de "As Três Máscaras de Eva".
São estágios em que observamos as diferentes características psíquicas de Nikki, conforme o local em que ela se encontra. Ela é transportada para a Polônia. Cenas da fita alemã se mesclam na narrativa. Um filme começa dentro de outro. Personagens olham através de janelas, frestas e buracos que se transformam em espelhos fílmicos que refletem em outras realidades, como se fossem telas projetáveis. Nikki chega a se observar literalmente dentro de uma sala de cinema. Figuras dramáticas apresentadas no inicio começam a se correlacionar. "Lost Girl" passa a assistir aos acontecimentos de Nikki pela TV e a história dos coelhos. Mulheres do oeste europeu são contrabandeadas para servirem como prostitutas. Passamos a entender a função do personagem chamado Phantom (Fantasma). Surrealismo e cubismo são as palavras de ordem. Salvador Dali e Picasso ficariam orgulhosos. Esses movimentos artísticos acabam instituindo figuras simbólicas. A família de coelhos, criado para o website de Lynch em 2002, simboliza uma espécie de purgatório ou inferno. Nikki precisa encontrar a saída, como uma Alice ou mesmo uma Dorothy e quem sabe terminar o martírio da "Lost Girl".
A cada novo corredor, viela, beco, casa abandonada, ou palácio, a textura do filme muda, criando uma aura assustadora. Esse clima de terror vem acompanhado de várias dicotomias: sagrado/profano, mulher casada/prostituta, atriz/personagem, entre outros antônimos visuais. Uma representação abstrata entre o mal e o bem, expressando a relação tênue entre o paraíso e o inferno. Entre esses dois opostos uma jornada pelo purgatório dentro de um looping atemporal e praticamente interminável, em que cenas são repetidas e revisitadas. A melhor definição vem do próprio Lynch ao citar uma passagem da escritura hindu Aitareya Upanishad: "Nós somos como uma aranha. Tecemos a vida e nos movemos nela. Nós somos como o sonhador que sonha e vive dentro desse sonho. Isso é uma verdade em todo o universo".