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Tubarão: Lado B - Spielberg e o Espetáculo

O Spielberg "jovem e estúpido", o Spielberg genial de verdade

12.05.2004, às 00H00.
Atualizada em 27.12.2016, ÀS 03H08

Leia aqui a parte 1

Tubarão foi o primeiro filme a superar a marca de US$ 100 milhões em bilheterias nos EUA. A marca duraria apenas dois anos, pois em 1977 entrou em cartaz Star Wars, do seu amigo George Lucas. Mas Steven Spielberg colhe até hoje os louros do sucesso estrondoso. O diretor diz que pelo menos metade desse êxito se deve à trilha sonora de John Williams. É bem possível que esteja certo - mas é também muito provável que o fenômeno impactasse menos se não fosse a segunda espetacular metade da película.

Antes tínhamos o ponto-de-vista do agressor. Agora o peixe salta, sacode e avança em direção à câmera. Se os primeiros setenta minutos de Tubarão servem para envolver o espectador no suspense, colocá-lo no lugar de Chefe Brody, os cinquenta minutos finais soltam a adrenalina represada. Trata-se da caçada interminável ("pescaria" soa simplório demais nesse caso) empreendida pelo trio formado por Brody, Matt Hooper (o oceanógrafo vivido por Richard Dreyfuss) e Quint (o pescador durão interpretado por Robert Shaw, 1927-1978). Como o filme trata da saga do policial pela superação dos seus limites, ele é o ponto de equilíbrio entre os dois opostos: o oceanógrafo racional com os seus sonares e o lobo do mar passional com as suas cicatrizes de guerra.

Somente aos oitenta minutos de filme, já em alto mar, o tubarão exibe os seus olhos opacos fora dágua pela primeira vez. Começa aí o virtuosismo de Spielberg, que o transformaria em sinônimo de aventura nos anos 80: narrativa ao mesmo tempo paciente e intensa, ritmo tenso, timing perfeito dos vários clímax e edição precisa (executada por Verna Fields, 1918-1982, premiada justamente com o Oscar).

Dublê de Liz Taylor

Mas notável mesmo é a coragem de executar cenas que parecem intraduzíveis do storyboard para a película. E o talento para contornar a dificuldade de tornar crível um bicho que engole pessoas, afunda barcos e arrasa ancoradouros. Como já dissemos, o tubarão mecânico mal funcionava. Na verdade, além de não funcionar, naufragava na locação, as suas três toneladas se estragavam na água salgada. E as marés mudavam, um barco afundou de fato com a equipe dentro, e o elenco ficava horas sem gravar, e havia dias de filmagens em que se aproveitavam apenas seis segundos de película.

As artimanhas mostraram-se necessárias. Para os movimentos mais complexos, foram feitas filmagens de tubarões-brancos reais na Austrália. A seqüência do ataque à gaiola submersa, por exemplo, foi parcialmente feita com um peixe real. Como a equipe não achou um tubarão-branco com as mesmas medidas do mecânico, foi projetada uma gaiola em miniatura para criar uma ilusão de escala. Não cabia um adulto na falsa gaiola: enviaram então à Austrália um jóquei que fazia dublê de crianças e de Elizabeth Taylor, para servir de mergulhador-cobaia.

Havia outros recursos. A cena da descoberta do barco naufragado de Ben Gardner foi feita num tanque da MGM e, em seguida, refeita na piscina da casa da própria Verna Fields. E quando não havia mesmo jeito, daí entram os geniais tambores que servem de bóias, os objetos arrastados pelo bicho para demonstrar que ele estava por perto... Só acompanhando esse tipo de detalhe é que percebemos como as facilidades digitais atuais uniformizam e empobrecem o cinema.

Outros tempos...

Claro, a predileção de Spielberg pelo espetáculo vinha acompanhada da obrigatória megalomania. Originalmente, o filme terminaria, como na morte clássica do Capitão Ahab de Moby Dick, com Quint afundando junto ao peixe, enroscado na corda de um arpão. Mas o diretor queria algo mais grandioso. Sugeriu a Benchley (que, aliás, faz uma ponta como o entrevistador do prefeito) que explodissem o tubarão-branco. O escritor achou inverossímil. "Não importa, tive os espectadores nas mãos por duas horas, eles acreditarão no que eu quiser nesses três minutos", decreta Spielberg.

Assim, antes que o som alegre das gaivotas volte para fechar o filme, a tela se enche com o desfecho do duelo. Nesse drama humano, fica fácil prever quem dará o golpe final no tubarão-branco. Difícil, mesmo, é acreditar que Spielberg um dia foi capaz de preencher toda a tela com o vermelho do sangue do bicho estraçalhado. Aliás, cenas excluídas e alterações no roteiro revelam uma matriz ainda mais violenta. É curioso ver, no documentário que segue como extra do DVD, que o diretor-família atual se considerava "jovem e estúpido" naqueles tempos. Pois aquele que era o Spielberg genial de verdade.