Noel Rosa era um corpo estranho no mundo do samba carioca dos anos 30. Filho branco de classe média, embrenhou-se no meio dos malandros negros. Numa roda cheia de músicos da Vila Isabel, parecia mais magro e mais frágil do que realmente era. Foram justamente essas suas características que ajudaram a aproximar a música que se fazia no morro dos ouvidos que estavam no asfalto.
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Noel - Poeta da Vila, cinebiografia dirigida por Ricardo van Steen com base no livro Noel Rosa: Uma Biografia, de João Máximo e Carlos Didier, joga as suas fichas na representação visual dessa disparidade: o ator escolhido para interpretar Noel, o igualmente estranho Rafael Raposo, com um queixo afundado como o do biografado, não parece sequer nascido na mesma vizinhança de sambistas como Ismael Silva (Flávio Bauraqui) e Wilson Batista (Mario Broder).
Convencionou-se dizer que a formação intelectual de Noel foi um dos fatores que o ajudou a se destacar entre as marchinhas anuais de carnaval a partir de "Com Que Roupa?", de 1930. O apelido de poeta vem daí - suas letras versavam, como de outros compositores, sobre mulheres, bebida e cigarro, mas as rimas de Noel continham também uma crônica social original.
Conta a favor do filme o fato de a carreira e a vida de Noel terem sido bastante breves. O compositor de "Fita Amarela" tinha apenas 27 anos quando morreu de tuberculose, e a efemeridade cabe bem num longa de 100 minutos. Em outras palavras: uma vida mais vasta teria problemas em ser condensada na tela. A intensidade com que Noel viveu está toda no filme de Van Steen, ainda que suas desventuras amorosas ganhem frequentemente mais espaço do que a sua música na tela.
É a necessidade de dar ao público um drama amoroso a se prender - a história de Noel com a dama de cabaré Ceci pode até ter sido menos importante na vida do músico, mas na tela o que norteia a trama de Noel - Poeta da Vila é mesmo o amor interpretado por Raposo e Camila Pitanga. Uma amor, vale dizer, que tem ápice na bela cena dentro do carro, com o bloco do carnaval passando do lado de fora. É o momento mais emblemático do filme: o homem fica, a sua música segue.
De resto, Noel - Poeta da Vila é bem o tipo de homenagem que não desagrada nem constrange - a reconstituição da época é correta e o respeito aos retratados é grande. O que causa mais ruído é uma mania de casting que assola diversas produções nacionais: colocar caras conhecidas para viver personagens totalmente opostos às suas personas públicas.
Já é difícil ver Jonathan Haagensen no papel de Cartola e levar a sério Paulo César Pereio como médico, mas não dá pra engolir Otto como gringo e Supla vivendo Mário Lago, por exemplo. É em horas assim que qualquer imersão que o espectador tenha no filme periga se perder definitivamente. Não há suspensão de descrença que resista às "pontas afetivas", esse mal que um dia há de ser erradicado.