É Jordan Peele, e por mais direto que seu novo filme seja, nada vai impedir que fãs e seguidores espremam cada conteúdo em busca de um significado maior. Desde sua estreia em Corra!, Peele construiu uma reputação de diretor de “terror inteligente”, e por mais que o rótulo seja questionável, cada um de seus filmes é interessante demais para que o espectador saia do cinema sem o impulso de discuti-los.
Seu terceiro e mais novo longa, Não! Não Olhe! não é exatamente enigmático quando se trata de sua conclusão. Mas com algumas reviravoltas no caminho - e alguns acenos simbólicos também - vale repassar os acontecimentos da reta final para entender exatamente o que se passou naquele dia difícil em Agua Dulce, Califórnia.
[cuidado com spoilers abaixo]
Em Não! Não Olhe! (ou Nope, título original muito melhor - até porque, convenhamos, o título em português veio até com um quase-spoiler), acompanhamos a jornada de OJ (Daniel Kaluuya) e Emerald (Keke Palmer), criadores de cavalos utilizados em gravações cinematográficas, para capturar em filme um estranho objeto que paira no céu de seu rancho. O primeiro aprendizado relevante em relação a essa ameaça é que aquele não é um disco voador tradicional, como presumido, mas sim uma criatura alienígena gigante.
Para OJ, o aprendizado vem após uma chuva de sangue, que combinada com o fato de a criatura não ter sugado uma linha de bandeirolas - nem os objetos de metal que caem do céu no começo do filme - permite concluir que a ameaça é de fato um ser vivo que se alimenta de matéria orgânica. O animal eventualmente batizado de Jean Jacket digere o que abduz (algo que, para nós, é apresentado em uma marcante cena de digestão de humanos) e cospe de volta o que não lhe serve.
Essa informação permite que OJ chegue à conclusão mais importante do filme, que vem de seu conhecimento como treinador de cavalos - a criatura não vai atrás de quem não a olha diretamente (o que nos leva ao spoiler do título em português). Essa informação foi indicada no início do filme por dois fatos diferentes: o primeiro, na filmagem do longa hollywoodiano, em que OJ tenta instruir a equipe a não olhar o cavalo diretamente nos olhos. A segunda é mais discreta e simbólica: a morte do patriarca Otis (Keith David ), atingido por uma moeda que entra diretamente em seu olho, já havia alertado dos perigos de olhar para cima (nota não relacionada: é reconfortante saber que já existe um filme chamado Não Olhe Para Cima para que Nope não fosse traduzido para isso).
A partir daí, nossos protagonistas - com ajuda do vendedor e expert em tecnologias Angel (Brandon Perea) e o diretor de cinema Antlers (Michael Wincott) - criam o esquema perfeito para registrar a existência de Jean Jacket em filme. Com ajuda de diversos homens infláveis espalhados pelo rancho (que ajudam a rastrear o alcance da criatura, capaz de afetar qualquer eletricidade) e uma câmera analógica, a equipe até consegue seu filme, antes de Antlers se sacrificar pela arte em um ato misterioso e Angel ser sugado, envolto em arame farpado.
O destino de Angel fica em aberto, uma vez que ele é cuspido de volta, Antlers é digerido e Emerald e OJ se aliam para escapar da criatura que, danificada pelo arame farpado, se abre em um formato magnífico e mutante. Com ela na moto e ele no cavalo, os dois fazem o percurso do rancho inteiro até que ela chegue até o parque faroeste de Jupe (Steven Yeun), vizinho do rancho. Lá, Emerald tem a brilhante ideia de soltar um boneco inflável gigante, que atrai Jean Jacket com seus olhos. Uma vez engolido, o boneco cheio de ar explode no sistema digestivo, supostamente matando a criatura.
Aqui, vale relembrar também um outro flashback, porque a empreitada bem-sucedida de Emerald fecha um arco aberto em sua infância. No início do filme, a irmã relembra do cavalo Jean Jacket, que serviria em sua primeira iniciativa para entrar para os negócios da família. Seu pai, no entanto, foi chamado para auxiliar nas filmagens de Escorpião Rei, junto com Jean Jacket, e Emerald acabou nunca recebendo seu treinamento. O alien batizado com o mesmo nome do cavalo, portanto, acaba sendo o primeiro animal domado pela personagem.
Nope tem um final feliz, portanto: OJ e Emerald não apenas sobreviveram ao ataque como conseguiram também registrar Jean Jacket, com ajuda de uma câmera fotográfica do parque de Velho Oeste.
O que a história de Gordy e Jupe representam?
Mesmo com um desfecho perfeitinho, muitas questões ainda pairam no ar de Nope, e a maior de todas é a história de Gordy’ Home, o seriado de TV do qual Jupe participou quando criança. Não! Não Olhe! começa com uma sequência nas filmagens do seriado, onde vemos o ataque de um macaco no set. Mais tarde, ficamos sabendo da história pelo próprio Jupe, na época um ator mirim e agora dono do parque que compra diversos cavalos do Rancho Haywood. Conversando com os protagonistas, Jupe reconta, mesmo que misteriosamente, o que se passou no dia do ataque do macaco, que se assustou com barulhos de balões e teve um acesso de fúria.
A história do passado serve muito para estabelecer o personagem de Jupe, poupado no passado pelo símio, que agora entende ter criado uma relação com a ameaça alienígena. Para ele, assim como Gordy era uma atração e entretenimento, Jean Jacket também é - e pode poupá-lo assim como o macaco também fez. Existe até uma relação comportamental entre JJ e Gordy: na cena do passado, Jupe se esconde embaixo da mesa e portanto não olha o animal diretamente nos olhos, o que pode ter sido o motivo pelo qual Gordy não o ataca. Ainda, os balões de Gordy e o boneco inflável que mata o alien abrem e fecham o filme.
O versículo que abre o filme - e o significado de Não! Não Olhe!
Nope abre com um versículo da Bíblia, do livro de Naum, que diz: “Vou jogar sujeira sobre você, tratá-la com desprezo e transformá-la em espetáculo”.
Enquanto a primeira parte da frase parece diretamente relacionada aos objetos que caem do céu e apresentam uma ameaça fatal aos habitantes de Agua Dulce, é a segunda parte do versículo que realmente importa para Nope. Como falou à Empire, Jordan Peele quis explorar uma questão específica em seu terceiro filme - nosso vício em espetáculo:
“Quando comecei a escrever o roteiro, comecei a me aprofundar na natureza do espetáculo, nosso vício em espetáculo e a natureza traiçoeira da atenção”.
Nada disso é difícil de encontrar em Nope, e está presente tanto na vontade imediata dos irmãos Haywood de registrar a suposta nave espacial, assim como na ambição de Jupe de criar uma atração temática no parque com a criatura, depois de ter sobrevivido (e transformado em memorabília) ao seu trauma infantil com Gordy. Estes são os maiores exemplos, mas Não! Não Olhe! trata disso a todo momento - seja no personagem de Angel, viciado em programas de aliens, sua assistente na loja, que questiona o sucesso de OJ enquanto come salgadinhos, na chegada do repórter da TMZ no rancho Haywood, e por aí vai.
A natureza e o vício em espetáculo também explicam, por exemplo, porque Jupe não consegue recontar exatamente o que aconteceu no set de Gordy’s Home, optando por descrever o esquete de Saturday Night Live para explicar o ocorrido. Nesse contexto, OJ não sai livre de culpa, mas existem alguns motivos pelos quais ele é nosso herói. Um sujeito menos interessado no entretenimento (algo, no mínimo, expressado pelo seu celular antiquado e pelo seu visível desconforto quando visita um set de filmagem, ao contrário da expansiva irmã), OJ respeita os limites da criatura, colocando-se sempre do lado de fora da sociedade viciada em espetáculo.
Não! Não Olhe! já está em cartaz nos cinemas brasileiros.
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