Ao mesmo tempo em que prepara uma continuação de Space Jam para reacender a nostalgia dos desenhos animados da televisão no cinema, a Warner Bros. desenvolveu um longa-metragem de Tom & Jerry sem fazer muito barulho. Numa analogia possível, é como o trabalho de artesanato do animador que volta ao lápis e papel para dar vida a personagens de duas dimensões, um ofício acima de tudo silencioso, frequentemente solitário.
Quando o Omelete visitou o set de filmagens de Tom & Jerry nos arredores de Londres, porém, o que vimos está mais para uma celebração coletiva. Uma das cenas, inclusive, envolve uma festa de casamento que poderia estar numa superprodução de Bollywood, com um bolo vermelho e rosa de quatro andares, que o chef vivido por Ken Jeong destrói com uma raquete de críquete quando mirava acertar o rato Jerry (a perspectiva de Jeong, de 1,65m, não é a mais privilegiada, porque o bolo deve ter uns 15cm a mais de altura).
Fora da cena, conversamos com parte da equipe técnica, que colabora com a companhia de efeitos visuais Framestore, para quem este filme que mistura pessoas em live-action com animais desenhados não deixa de ser uma celebração de técnicas antigas e novas de animação. “O processo começa com animação a mão, depois adicionamos no computador os objetos 3D, e por último fundimos os dois”, explica o supervisor de efeitos visuais Frazer Churchill. Boa parte da equipe trabalhou em Uma Cilada para Roger Rabbit, há 30 anos, então retomar a prancheta e os personagens em 2D, apesar das ferramentas digitais, tem um sabor de viagem no tempo.
Tom e Jerry não falam no filme, só emitem sons. “É um desafio [para os roteiristas], mas fica mais cool assim. Seguimos como foi na maior parte da história dos dois. É mais pantomima”, diz o produtor Chris DeFaria. Essa aposta no humor físico e na violência cartunesca inclui elementos clássicos dos desenhos da dupla, como a “nuvem de porrada”. “De um lado, Tom pode acertar Jerry com um objeto, que deforma com o formato do rato. Do outro, Jerry pode atacar com uma buzina ou uma banana de dinamite escrito ‘TNT’. Só coisa clássica. Nossa base visual é a era de ouro do desenho, fim dos anos 1940, começo dos 1950.”
Isso justifica o traço de animação 2D, eleito para o filme em detrimento de um acabamento mais de CGI. Visualmente, os personagens têm profundidade, o que muda dependendo de como a luz incide sobre eles (ou a água, quando Tom toma chuva, por exemplo), mas as silhuetas e as texturas são simples, lisas, para evocar justamente o traçado clássico dos personagens da televisão. O mesmo vale para os outros personagens animados: ao total são 26 animais, entre gatos, ratos, cachorros, esquilos, cavalos, elefantes, tigres, pombos e, como não poderia faltar, um peixinho de aquário, Goldie. Além do peixe-dourado, outros personagens saídos diretamente da série animada incluem o buldogue Spike, os gatos vira-lata Meathead e Butch, a gatinha manhosa Toots, o gato filhote Topsy, todos originados na fase clássica da Hanna-Barbera dos anos 40 e 50.
WB/Divulgação
Drone e Instagram
A trama se passa toda no fictício Royal Gate Hotel e em arredores em Manhattan. Jerry, o rato despreocupado que sempre tem a sorte a seu favor, se estabelece a Nova York e logo encontra o gato Tom, sempre esforçado, que sonha em se realizar na cidade grande. Lá a dinâmica de caçada entre os dois (re)começa - “não é uma história de origem, e não faz muita diferença se eles já se viram antes”, diz DeFaria, assumindo que a dinâmica é consagrada, como nos desenhos - nas dependências do hotel, onde um casal de noivos (vividos por Pallavi Sharda e Colin Jost) se hospeda e planeja celebrar seu matrimônio. Até o clímax com a cerimônia de casamento, com direito a elefantes enfeitados, colunas, pórticos e muitos neons, Tom e Jerry provocam o caos no hotel, para pavor do gerente Terrance (Michael Peña), que detesta animais e portanto já se candidata de cara a ser o vilão da história.
“Normalmente não aceitamos pets mas podemos abrir uma exceção”, diz o gerente ao personagem de Jost, que é o dono do cachorro Spike no filme. A exceção se justifica porque os noivos são celebridades do Instagram, um dos elementos que o roteiro saca para modernizar sua ambientação. Outra é a aposta no público do Oriente, particularmente o indiano. Atriz australiana de ascendência indiana, Pallavi Sharda conta que não há números musicais tipo Bollywood (“Não vai ter duelo de coreografia!”, diz), mas a ideia é “normalizar relações e hábitos como fazer um casamento indiano em plena Nova York sem tornar isso um exotismo; na trama do filme inclusive lidamos com a questão cultural e discutimos o quanto a cerimônia tem que seguir a tradição hindu do Panjabe e o quanto podemos modernizar”.
De novo temos, portanto, essa conversa entre o antigo e o novo. Na própria ambientação do filme, muita coisa é projetada para ser atemporal e evocar os “bons velhos tempos”, como a decoração do hotel vintage e as cenas em que Tom sonha com o sucesso em Nova York - momento de piadinhas referenciais em que o gato se imagina em Casablanca, no Manhattan de Woody Allen, e tocando piano como Ray Charles. Não fossem elementos como Jerry sobrevoando o cenário a bordo de um drone, seria difícil dizer que o filme se passa no século 21.
No geral, o diretor Tim Story, conhecido pelos dois Quarteto Fantástico da fase Jessica Alba, parece tentar emular o clima colorido do sucesso Podres de Rico (não por acaso, uma produção também da Warner) enquanto atende a nostalgia da correria dos desenhos antigos. A trilha sonora, segundo Story, deve refletir a fusão do clássico e do moderno: “Temos uma vibe de big band, jazz e orquestra, que combina com o desenho, mas não podíamos depender só disso, então incluímos coisas mais contemporâneas para não deixar a música datada. Vai tocar coisas que talvez você tenha no seu Spotify, e até Tom, quando sobe ao piano, toca não apenas standards de jazz mas também uns sons meio Coachella”.
WB/Divulgação
Bunraku
Enquanto isso, Ken Jeong continua tentando acertar Jerry com a raquete, seis vezes, depois um fôlego, uma sétima raquetada, depois outra. “Você está mexendo com o chef errado!”, esbraveja o personagem enquanto espatifa o bolo. Ao todo a produção criou quatro bolos reais, mas só dois foram usados na filmagem (e completamente arruinados na fúria do ator). Quando Jeong precisa fazer os planos de close-up, a equipe só arruma um pouco de massa no topo do bolo para tapar os buracos. No meio disso tudo, ao vivo, Jerry é apenas um recorte de cartolina ou papelão na ponta de uma vara, usado como referência visual.
Já a criação do Tom referencial demandou um esforço diferente. É com uma certa solenidade que a produção traz o gato para os jornalistas brincarem na visita aos estúdios em Leavesden: Tom é um boneco articulado de 60cm de altura, com um esqueleto de metal coberto de espuma, movido no estilo bunraku do teatro japonês, com quatro varas de controle, duas nos braços, uma no torso e uma na cabeça. Às vezes, quando precisa se mover no set, o boneco é controlado por três pessoas ao mesmo tempo; a equipe antes havia criado bonecos para Animais Fantásticos e Onde Habitam (que também foi rodado no mesmo complexo da Warner) e para a montagem londrina nos teatros de Cavalo de Guerra. Um dos marioneteiros de Tom faz também o dublê de captura de movimento de Spike em cena: “O cara que faz o Spike é intenso! Como dançarina, eu respeito todo artista que sabe controlar e lidar com movimentos para se expressar”, diz Pallavi Sharda.
“O que tira um pouco da pressão de cima da gente é que se você não fica muito engraçado em uma cena, tem os personagens de desenho para compensar”, diz Colin Jost, mais conhecido por ter integrado o elenco de comediantes do Saturday Night Live. “Esse tipo de desenho de patetas meio violentos são parte da minha formação quando criança”, emenda. A protagonista Chloë Grace Moretz, que interpreta uma nova funcionária do hotel, responsável por organizar o casamento, se vê no fogo cruzado dos animais. “O filme não é violento como se pensa hoje, com agressividade e xingamentos. É mais uma violência extravagente”, diz. “Não houve nenhum momento adulto neste set. Um dia eu estava lá e vem um homem crescido andando de quatro como um cachorro.”
Tim Story diz que assistiu a muitos filmes mudos para tentar entender o potencial de uma narrativa comunicada não com palavras mas com gestos - e com pancadaria mesmo. “Tom e Jerry realmente tentam matar um ao outro, e em alguns casos deveriam”, brinca o diretor. “No filme, as brigas e perseguições não são exaustivas, porque temos os personagens humanos no meio. A ideia é que a caçada de gato-e-rato acompanhe essa história, e arco de Tom e Jerry encaixe no fim com o dos humanos.”
Os fãs e um novo público vão poder descobrir que arco é esse - feito de Jerry andando pelos cantos do hotel e tentando aproveitar bons nacos de queijo à luz de velas em paz, para a completa inveja e sofrência do sonhador gato Tom - a partir de 11 de fevereiro, quando Tom & Jerry estreia no Brasil.