Ame ou odeie Christopher Nolan, é preciso reconhecer que o diretor é um dos poucos nomes de grife hoje em Hollywood a fazer da experiência no cinema um fim em si mesmo. Se o espaço da sala escura é sagrado, então é com uma obsessão mesmo religiosa que Nolan defende o preciosismo da projeção em película, dos efeitos visuais práticos, das especificações técnicas de IMAX. Haveria muito de arrogância britânica nisso se o próprio cinema de Nolan não fosse feito, desde os primeiros filmes, pensando sempre nas atrações. Se os blockbusters dos anos 2000 voltaram a ser pautados pela atração (e pelo caráter novidadeiro, não pelos seus astros) isso se deve muito a tecnicistas como Nolan, James Cameron, Peter Jackson.
É plenamente discutível a estratégia de Nolan de, no auge da pandemia, colocar o lançamento de seu Tenet como uma prioridade. No começo de outubro o crítico Guy Lodge escreveu no Guardian - com uma tendência ao alarmismo esclarecido que é típico do jornal inglês - que o lançamento meia-bomba de Tenet em setembro foi crucial para espantar os demais blockbusters de fim de ano para a temporada 2021, o que pode impactar negativamente as redes de exibidores ainda mais (na mesma semana a rede Cineworld inglesa anunciou que voltava a fechar temporariamente suas salas).
Ninguém pode acusar Nolan, porém, de não ser assertivo. E num contexto em que atividades culturais esboçam um retorno mas o público fica num fogo cruzado de argumentações - os exibidores dizem que as salas de cinema têm sistemas de refrigeração com renovação de ar similar ao de hospitais, os epidemiologistas reforçam que a melhor precaução é seguir o distanciamento social - essa assertividade ganha quase um caráter de verdade absoluta. Tenet é um blockbuster milionário do mesmo criador de A Origem que foi projetado para ser visto na maior tela possível, e talvez seu destino manifesto seja mesmo salvar os cinemas.
Christopher Nolan não parece ser o tipo de artista abnegado que recusa esse messianismo caso lhe atribuam. De qualquer forma, na melhor das hipóteses, Tenet pode ser um passatempo digno do valor do ingresso, e foi com uma mistura de receio e empolgação que voltei a uma sala de cinema depois de oito meses, para assistir ao filme numa sessão de imprensa em São Paulo.
O ofício levou igualmente outros 80 jornalistas ao IMAX naquela manhã; a lotação da sala, que comporta 379 pessoas, foi reduzida seguindo as especificações de combate ao Covid-19. As poltronas são marcadas com intervalos variados (há algumas juntas, para casais, e a maioria segue a regra de duas poltronas de distância) e recomendava-se que cada jornalista ficasse com sua própria garrafa de água e só removesse a máscara quando fosse bebê-la. De início, assistir a novíssimas vinhetas de segurança na telona de IMAX causa uma sensação incômoda - como se a oportunidade de vê-las fosse uma novidade auspiciosa, uma atração - mas eu estava ocupado demais tentando respirar sem embaçar meus óculos para reparar nos avisos.
Tenet dura duas horas e meia, tempo suficiente para abstrair de vetores de contágio, carga viral, classes de EPI e outros conceitos a que fomos apresentados ao longo de 2020. Ao final da sessão, a saída da sala é feita por fileiras, como numa cerimônia de escola. Que os personagens do filme recorram a máscaras de oxigênio a certa altura - uma baliza visual que Nolan cria para ajudar o espectador a diferenciar os personagens que estão no contrafluxo temporal - é uma irônica lembrança do que estamos vivendo fora da ficção.
Ainda assim, pelo menos para mim, e independente da qualidade do filme, voltar ao cinema, ficar com o nariz colado na tela (eu sempre escolho as primeiras fileiras, então não fiquei com a sala esvaziada no meu campo de visão, como lembrete das medidas de segurança), tem o poder mesmo de transportar por duas horas para uma realidade suspensa e segura.
Essa impressão é obviamente emocional e não tem nenhum lastro científico, e não há argumento pró ou contra a reabertura das salas de cinema que possa remediar nossa sensação de estranheza ou pelo menos melancolia quando o filme termina, as portas se abrem e voltamos a encarar a realidade. Se o cinema de atrações, como o feito por Nolan, se renova de tempos em tempos em Hollywood é justamente porque seu poder de capturar nossa atenção ainda respira, mesmo com dificuldades.