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Obscurinho do cinema

Obscurinho do cinema

29.11.2004, às 00H00.
Atualizada em 14.11.2016, ÀS 23H03

A primeira adaptação para o cinema de uma obra de William Shakespeare de que se tem notícia foi filmada em 1899. Trata-se de uma cena de pouco mais de três minutos, retirada da peça Rei João, e dirigida pelo ator Herbert Beerbohm Tree. Desde então, seguiram-se centenas de versões, em dezenas de países. Cada geração de cineastas lidou com o texto de acordo com seu momento histórico e, nas melhores tentativas, demonstrou como uma obra que retrata tão bem o homem dificilmente perde sua atualidade.

Shakespeare no cinema é um desafio. Nos palcos, o diretor conta com o texto e com o elenco para passar ao espectador sua história, e o ângulo de visão depende apenas de onde você está sentado. No caso do cinema, ele tem que lidar com trilhas sonoras e cenários elaborados, além de possibilidades infinitas de enquadramento. Cada escolha em relação a estes elementos aponta para a interpretação que o cineasta deu ao texto. Alguns preferem, inclusive, alterar diálogos, eliminar tramas paralelas e encurtar as histórias. Não há nenhum problema nisso, já que cinema e teatro têm linguagens completamente diferentes. Além do que, estes textos existem há quatrocentos anos e estão aí para serem mexidos, analisados e apresentados de acordo com a visão que melhor convir ao diretor.

Para não virar uma salada, neste Obscurinho vou falar de três filmes inspirados na mesma peça, a tragédia Rei Lear.

A história

Há duas tramas correndo paralelamente na peça. Na primeira Lear, um rei, bastante idoso, divide suas terras entre as filhas Goneril, Regan e Cordélia. As duas primeiras adulam o velho. Cordélia, no entanto, é sincera e desagrada seu pai. Como todo bom monarca aborrecido, Lear a deserda e partilha seu dote apenas entre as outras filhas. O rei mantém um séqüito de cem soldados e pretende revezar sua estadia entre os castelos das duas filhas que lhe restam. Goneril e Regan tramam contra o pai, que acaba sem residência e acompanhado apenas de seu bobo. Este, por sinal, é uma figura central da peça, e funciona como a consciência crítica do rei.

Na segunda trama, Edmundo, filho bastardo do Conde de Glócester e grande vilão da história, trai o irmão Edgar para ficar com seu direito de nascença. Mais tarde, ele trai o próprio Glócester, e seduz tanto Goneril quanto Regan. Apesar de não trocar uma palavra sequer com Lear durante toda peça, é Edmundo que trama todas as situações que culminam em um dos finais mais trágicos de toda obra do bardo britânico.

União Soviética 

Como adaptação fiel do texto, Rei Lear (Korol Lir, 1969) de Grigori Kozintsev é a melhor das três versões aqui tratadas. Apesar de eliminar diálogos e cenas, o diretor transpõe as questões centrais da peça à linguagem de cinema com bastante felicidade. A começar pelo ator estoniano Jüri Järvet (o dr. Snaut, de Solaris), que dá um banho no papel do rei atormentado. Järvet é ator de cinema, o que faz com que as transformações e conflitos de Lear apareçam na tela de maneira muito mais sutil do que é possível no teatro. Outra característica das peças de Shakespeare mantida no filme é a maneira intrincada como são desenvolvidos certos personagens secundários. Kozintsev acerta a mão no elenco e na direção, e nenhuma das tramas paralelas é deixada de lado.

O crítico de literatura Harold Bloom defende a idéia de que nem o próprio Shakespeare, dirigindo uma de suas peças no teatro Globe, seria capaz de explorar a infinidade temática de suas obras. Assim como qualquer diretor, ele teria de fazer escolhas enfatizando uma ou outra perspectiva do texto.

Kozintsev faz de seu Lear uma espécie de épico psicológico sobre a velhice e as raízes do poder. A trilha sonora do compositor Dmitri Shostakovich acompanha os personagens no desenrolar da tragédia, dando corpo ao drama de cada um deles. O filme faz justiça à complexidade de um dos trabalhos de Shakespeare mais difíceis de serem adaptados, seja para o teatro ou para o cinema.

A boa notícia é que a fita foi restaurada pelo Ruscico, o Conselho de Cinema Russo, e está a venda no site deles (aqui). É um DVD internacional, e tem legendas até em português. Rei Lear foi o último filme de Kozintsev, que dirigiu também uma versão de Hamlet e até um Don Quixote, de Cervantes.

Japão

Ran (1985), do diretor Akira Kurosawa, não é exatamente uma adaptação de Rei Lear, e sim um filme inspirado na peça de Shakespeare. O cenário é o Japão feudal, e o rei é substituído pelo Grande Lorde do clã dos Ichimonji, um velho samurai chamado Hidetora. Kurosawa transforma as filhas em filhos, e adiciona diversos elementos da cultura japonesa à história. Para completar, elimina a trama que envolve o Conde de Glócester, mas incorpora alguns personagens desta história paralela à sua versão. O vilão Edmundo, por exemplo, está presente na figura de Kaede, esposa do filho mais velho de Hidetora. Já Glócester e Edgar aparecem como Tsurumaru, um nobre cujos pais foram assassinados pelo Grande Lorde.

Kurosawa passou dez anos preparando Ran, e planejou cada cena por meio de uma série de pinturas. Como estava quase cego quando dirigiu a fita, foram essas pinturas que auxiliaram seus assistentes nos enquadramentos e seqüências. Por este motivo, Ran lembra um quadro a óleo em movimento, e sua beleza é tão espetacular quanto indescritível. Uma cena em especial, a da batalha filmada sem sons, mostra como certos tormentos expressados em texto por Shakespeare podem migrar para as telas de maneira completamente diferente, porém com a mesma eficácia. Steven Spielberg, que bancou Ran junto com George Lucas e Francis Ford Copolla, copiou descaradamente a batalha, na abertura do temível Resgate do soldado Ryan.

Esta é a segunda adaptação de Kurosawa a uma peça do bardo. Em 1957 ele fez Trono manchado de sangue (Kumonosu jô), baseado na tragédia Macbeth. As duas fitas são geniais, mas creio que Ran, por ter sido realizado já na velhice do diretor, capta melhor as questões da peça e tem muito mais a dizer. As duas estão disponíveis em DVD aqui no Brasil (saiba mais), e Ran chegou inclusive a ser vendido em bancas de jornal. Mas recomento que fuja desta versão, pois ela foi retirada de um negativo velho e cheio de fungos e não faz jus ao espetáculo de cores que é Ran.

Inglaterra

Rei Lear tem uma função definida na tradição teatral: é a peça por excelência que grandes atores escolhem para interpretar na velhice. Foi, portanto, o último trabalho do bardo realizado por Laurence Olivier. Como filme, é o pior deles, sem dúvidas, mas vale lembrar que Olivier levou Hamlet, Henrique V e Ricardo III, meu favorito, para o cinema, e que este Lear foi feito para a televisão. Ele já estava com 75 anos quando aceitou o papel, e as quase três horas de fita valem, exclusivamente, por sua atuação. Apesar de ser mais teatral do que Jüri Järvet, Olivier não é nem um pouco canastra. Nada contra atores de teatro, mas o fato é que alguns deles costumam trazer às telas certos elementos que pertencem exclusivamente aos palcos. Este Lear, também disponível em DVD por aqui (saiba mais), é o mais longo e fiel à história. O próprio Olivier, porém, chegou a admitir que a versão de Kozintsev era melhor. Ponto pra ele.