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Paulo Gustavo: Começo, Meio e Pra Sempre

O relato de um primeiro encontro com a mãe que ainda nem era uma peça

05.05.2021, às 16H11.

Vivemos na classe artística o domínio do drama, em qualquer canto do globo, em qualquer instância da análise e da crítica especializada. O drama é, enfim, o “gênero maior”, aquele que aparece nas indicações ao Oscar, aquele que premia ícones do teatro e que seduz estudantes de artes cênicas nas salas de estudos de interpretação do país. O drama é quando você “prova que é um bom ator”. Na própria história do nascimento do teatro, a comédia surgiu como uma “brincadeira” entre os atos de uma tragédia.

Curiosamente, é justamente, ela, a comédia, que mantém a engrenagem funcionando. As comédias enchem os teatros e proporcionam que o drama, a pesquisa, o experimento, continuem em curso. É como no cinema também. O blockbuster enriquece o estúdio e dessa maneira ele pode continuar aprovando manifestações menos comerciais da peça cinematográfica. A comédia é a âncora. A comédia sustenta. E a razão pela qual ela continua lotando os teatros e salas de cinema é porque não há forma mais pura e acessível de catarse do que aquela que vem através do riso. O riso filtra o espírito.

Ontem, dia 04 de Maio de 2021, nós perdemos Paulo Gustavo; e eu – que também me aventurei e ainda me aventuro pelo mundo dos palcos vez ou outra – lembro dele nos camarins apertados do pequeno teatro de Cabo Frio, no interior do Rio de Janeiro, esperando para entrar em cena junto com o amigo Fábio Porchat. Era o ano de 2005 (se não me falha a memória) e naquele Festival de Esquetes estávamos todos atrás da mesma coisa: um pouco de dinheiro para conseguir continuar criando e um pouco de aprovação pública ao nosso talento individual. No mundo do teatro as esquetes servem para isso: tentar, arriscar, experimentar.

Paulo Gustavo e Fábio Porchat estavam juntos em duas cenas. Na primeira (que eu me lembro que se chamava “O Ovo”), o texto era do Fábio. Ele era a estrela da cena e Paulo Gustavo ficava de coadjuvante. Na outra (que não lembro o nome) Fábio fazia um marido calado, lendo um jornal na sala, enquanto Paulo Gustavo vivia uma mãe preocupada, andando de um lado para o outro, balançando os cabelos, cismada que o filho era gay. Acho que o nome do marido já era Carlos Alberto, o nome do filho já era Juliano e mesmo que eu não tenha nenhuma lembrança da cena dizer o nome da mãe, tenho certeza que ela já se chamava Hermínia.

Começo...

A cena estrelada pelo Porchat eu não cheguei a assistir, mas a cena de Paulo Gustavo eu acompanhei de perto, na plateia, para nunca mais me esquecer. Tenho poucas lembranças dele nos alojamentos ou mesmo nos bastidores, mas da cena eu me lembro perfeitamente, porque o tom de sua voz, os detalhes daquela imersão nos trejeitos de uma clássica mãe do subúrbio, o texto cheio de tiradas hilárias e provocativas... Mesmo tendo demorado tanto tempo para que ele fizesse sucesso, daqueles 10 minutos de esquete eu nunca me esqueci.

Dona Hermínia ainda não usava os rolos no cabelo, mas já tinha um vestido esvoaçante, antecipando a curiosa predileção de Paulo pela imagem meio anos 50 da personagem. A peruca era escura, longa. A cena tinha poucas marcações e Porchat, sentado na poltrona, não dizia uma só palavra. A plateia, contudo, não fazia silêncio. Eram gargalhadas e gargalhadas, uma atrás da outra, que acabaram se fixando na minha memória porque provocaram aquele transe coletivo, onde todos vibravam na mesma sintonia, entregues à alegria daquele momento, esquecendo do mundo lá fora e dos terrores que ele reservava. Só a comédia é capaz disso.

Não tenho nenhuma recordação a respeito de prêmios para o Paulo naquele Festival. Fábio venceu júri popular pelo seu “Ovo”, mas o vencedor de Melhor Esquete provavelmente deve ter sido alguma montagem hiper visceral com corpos retorcidos e maquiagem de argila. A cena do teatro amador é assim mesmo... As pessoas clamam por aprovação de outros artistas, muito antes de clamarem pela aprovação do público. Vez ou outra surge alguém que já está feliz em conquistar a própria audiência, pelo riso, pela sagacidade, mesmo que num palco vazio, com o mínimo de recursos visuais. Algumas pessoas tem como missão de vida nos fazer esquecer da nossa.

Aquele Festival em Cabo Frio, no ano de 2005, foi um exemplo micro do que provavelmente foi a carreira de Paulo Gustavo durante muitos anos. Quando você se envolve com comédia precisa acreditar primeiro no potencial da sua voz.

Meio...

Uma das coisas mais fascinantes a respeito da carreira de Paulo Gustavo é que ele fez o caminho inverso. Geralmente a TV promove visibilidade e dessa maneira os artistas conseguem levar adiante seus projetos. No caso dele, o sucesso veio primeiro com o teatro e a TV foi uma consequência dessa virada. O mais curioso ainda é que essa chegada na TV também não aconteceu da maneira mais comum entre aqueles que alcançam muita visibilidade: Paulo se tornou um fenômeno de popularidade por causa do cinema, por causa de um programa em um canal fechado e sua entrada nos portais da TV Globo, aconteceu, efetivamente (depois de várias pequenas participações), poucos meses antes de sua morte, no especial de fim de ano do 220 volts.

É notório que ter conseguido se tornar o gigante que se tornou através do cinema, dá ao ator um lugar de genialidade no cenário artístico brasileiro. Com Minha Mãe é Uma Peça, ele arrebatou as pessoas de uma maneira impensável até então, com estatísticas e afetos sendo distribuídos no meio de um país polarizado pelas ideologias políticas. Dona Hermínia (que naquele festival lá em Cabo Frio fazia piadas questionáveis sobre a homossexualidade do filho e o peso da filha), foi se tornando uma mãe louca e adorável na mesma medida, ranzinza e carente nas mesmas instâncias, um reflexo direto da nossa realidade, mesmo carregada de várias camadas de exagero.

Aos poucos, a vida foi se encostando com mais força na porção fantasiosa. Hermínia tinha um filho gay que queria se casar. Paulo Gustavo - que começou sendo discreto com a própria sexualidade e foi duramente criticado por isso - também era o filho gay que queria se casar; e a partir de determinado ponto, a construção pública de sua família, com marido e filhos, se tornou uma antecipação da última aventura de Hermínia na tela grande. Quando Minha Mãe é Uma Peça 3 estreou, todas as críticas foram engolidas a seco. Aquela era uma obra de pura celebração do amor, da aceitação plena, que se despedia sem nem saber que era isso que estava fazendo.

E Pra Sempre

O que Paulo Gustavo conquistou em sua carreira foi muito mais do que o riso, foi muito mais do que o transe coletivo das plateias. Ele proporcionou a coletividade. Quando o público parava para acompanhar a vida de Dona Hermínia, não importavam mais as diferenças, não importavam mais os preconceitos... Ele contou uma história de amor na tela e fora dela e nos fez torcer pela felicidade de seus personagens tanto quanto pela de seu intérprete. Paulo e sua família – sua mãe, irmã, pai, marido e filhos – se tornaram uma espécie de sustentação das nossas esperanças, um exemplo de que somos muito mais parecidos do que imaginamos e de que a felicidade reside nas pequenas coisas do dia a dia.

Perdemos um ator, mas também ficamos órfãos de uma mãe. Paulo Gustavo para nós era um fazedor de risos rasgados, mas ele também era um homem de verdade, vivendo o período mais incrível da própria vida. Para nossa sorte e para sorte dos que estavam próximos a ele, sua obra fica, seus personagens ficam. Como acontece com todas as mães que perdemos, fica conosco a voz bem alta que nos cobra e reclama, mas que também nunca deixa de nos acolher. Ninguém queria que você partisse, Paulo. Mas, agradecemos imensamente por você ter nos escolhido para ser sua plateia.