Os ciclos se repetem e, de tempos em tempos, a panela de pressão social dos EUA explode em protestos como o Black Lives Matter. Ao mesmo tempo em que responde a essas urgências, o cinema de Spike Lee traçou ao longo de quase 40 anos uma trajetória temática própria, que entende seu contexto e o absorve numa obra de invejável unidade. Os filmes de Lee são facilmente reconhecíveis por tiques de estilo (o traveling com o ator deslizando imóvel, o corte acelerado para emular uma cadência musical, os planos repetidos para reforçar uma fala) mas também pelo discurso despudorado com que o diretor analisa de dentro as idiossincrasias da América negra e as recontextualiza.
No geral, seus filmes não tiram o universo negro do "mundo real" para tratá-lo como um regime de exceção, congelado no tempo e imaculado de influências. Eles partem, sim, de um ponto de vista bastante maduro que toma microuniversos como ponto de partida (sejam os conjuntos habitacionais do Brooklyn, os violentos cruzamentos do Sul de Chicago ou as batalhas do front europeu na Segunda Guerra) para formular uma visão de mundo mais ampla sobre sexo, violência, desamparo, justiça, família e hereditariedade. Em outras palavras, o cinema de Spike Lee não está interessado em cristalizar a identidade afroamericana, mas em investigar o que a torna complexa e mutável - para assim protegê-la do paternalismo e, em última instância, do apagamento.
Não por acaso, muitos dos pontos altos da carreira do cineasta têm a vocação para a crítica, seja para falar dos prazeres que anestesiam a coletividade em Chi-Raq (2015), seja para acusar as fraquezas da religião em Verão em Red Hook (2012) ou revisitar as caricaturas da blaxploitation em Infiltrado na Klan (2018). São filmes que evitam o moralismo e transcendem o seu tempo, porque enxergam nos pequenos dramas os conflitos que se repetem entre nós e nos tornam humanos desde tempos imemoriais. Ao mesmo tempo, Chi-Raq não deixa de ser um relato pontual da era do protagonismo feminino na cultura americana nos anos de Rihanna e Beyoncé; Infiltrado na Klan coloca Charlottesville na tela um ano depois da marcha neonazista; e Verão em Red Hook ecoa o acerto de contas dos EUA com os abusos cometidos por suas autoridades religiosas, revelados neste século. De novo: parte-se de um microcosmo, às vezes anedótico, para falar de algo maior, sério, e talvez atemporal.
Não é raro que esses filmes evoquem, então, mitos ou parábolas da Antiguidade para traçar paralelos com a atualidade, como a comédia grega Lisístrata no caso de Chi-Raq ou a travessia do Rio Jordão em Pass Over (em que Lee endossa o texto da dramaturga Antoinette Nwandu). Fazer essa longa ponte talvez sirva de antídoto para as tragédias da vida real que insistem em se repetir, como o assassinato de George Floyd, como se a História não aprendesse nada consigo mesma. Embora Spike Lee obviamente aborde essas repetições e faça delas um tema recorrente, seu cinema exalta a História como um acúmulo de experiências. As questões geracionais e de hereditariedade foram centrais no seu começo de carreira; basicamente Mais e Melhores Blues (1990) é a história de um músico que aprende a não transferir para seu filho os erros herdados na sua própria criação. É sintomático que esse filme tenha sido o último do cineasta com a colaboração do músico Bill Lee, pai de Spike, na trilha sonora, antes de azedar a relação entre os dois.
A disposição para a terapia e o olhar histórico - parar, refletir, sentir o pulso e os humores da época - frequentemente permitiu que os filmes de Lee registrassem a quente ou mesmo antecipassem certos eventos. Faça a Coisa Certa, sobre a panela de pressão das tensões raciais urbanas, saiu dois anos antes do espancamento de Rodney King que gerou as revoltas de 1992 em Los Angeles. A Hora do Show, sobre como a cultura negra foi apropriada pelo mainstream, estreou em 2000 e ao longo da década o rap, o R&B e astros como Will Smith e Halle Berry ajudaram a diluir as fronteiras raciais do pop. A Última Noite saiu em 2002 e foi, até a estreia de Zodíaco (2007), o filme americano que melhor traduziu o sentimento generalizado de melancolia e incerteza que tomou o país depois do 11 de Setembro. Em Mais e Melhores Blues, a personagem francesa antecipa o "racismo reverso" em uns bons 20 anos, e em Faça a Coisa Certa o Brooklyn já está na mira da gentrificação que tomaria o bairro na virada do século.
É possível que o cineasta tenha adotado essa postura de observador externo, e de mediador, porque ele não faz o tipo macho alfa. Magro, sempre de óculos de lente grossa e 1,68m de altura, Lee seria tipificado como o nerd se não interpretasse na tela o malandro, fã de basquete e bom de lábia. Já diz muito que no seu filme de estreia, Ela Quer Tudo (1986), sobre uma garota cobiçada por três pretendentes (um deles, Mars, de perfil pivete, é vivido por Lee), os dois negros adversários (um é o cara certinho e o outro, o bon vivant atlético) perguntem o tempo todo para a protagonista o que ela afinal enxerga em Mars. Se encenasse comédias gregas, Spike Lee certamente seria um sátiro, criatura meio homem e meio bode que transita entre os mortais e os deuses com desenvoltura e, por isso, tem visão privilegiada do que se encena. Aos sátiros se atribuem os instrumentos musicais (Lee vive um agente de músicos em Mais e Melhores Blues), o hábito da bebida (Lee cede ao vício em Malcolm X) e a rotina do sexo (em Ela Quer Tudo e Faça a Coisa Certa).
A frontalidade com que Spike Lee encena e discute o sexo, ademais, com uma franqueza libertadora que não tem nada do moralismo com que o cinema americano em geral lida com o assunto, já demonstra bem a disposição dos seus filmes para o diálogo. O que está em jogo aí é a próprio noção de convívio, sendo o sexo o convívio na sua máxima expressão. Malcolm X é o filme do auge do prestígio - realizado no momento da consolidação de uma certa autoridade de Lee sobre a história negra americana - e não deixa de ser um grande filme-síntese, porque o dilema do ativista morto em 1965 entre o engajamento pacifista e a ruptura armada é acima de tudo uma escolha filosófica entre tipos opostos de convívio. Spike Lee já havia elaborado sobre a escolha do amor ou da violência em Faça a Coisa Certa. A cena que ressignifica os punhos do LOVE e do HATE é uma homenagem a O Mensageiro do Diabo, noir cult de 1955, e nessa brincadeira de cinefilia está outra prova de que seu cinema acredita na História para encontrar suas respostas.