Os vampiros estão saindo do caixão. Na verdade, nunca deixaram de sair, mas o ano de 2022 tem sido excepcional para os dentuços — recheado de séries de TV protagonizadas por eles nas telas.
A estreia de Interview with the Vampire (AMC), baseada em Entrevista com o Vampiro, o célebre romance de Anne Rice, foi uma das mais aguardadas de 2022, e já tem se mostrado uma propriedade valiosa para o canal a cabo, que há pouco entrou no mercado de streamings com sua própria plataforma, a AMC+. Outra estreia divulgada a todo vapor é a de Let the Right One In (Showtime), inspirada no livro Deixa Ela Entrar, de John Ajvide Lindqvist, o mesmo que serviu de base para o aclamado filme de Tomas Alfredson lançado em 2009. Jacob Batalon, o adorável Ned da recente trilogia Homem-Aranha, protagoniza a comédia Reginald the Vampire (SyFy).
Interview with the Vampire trata da relação caótica do casal Louis (Jacob Anderson) e Lestat (Sam Reid), que atravessam séculos se mordendo — seja ao expressar mágoa um pelo outro ou no sentido kinky do ato. Let the Right One In, por sua vez, traz um pai (Demián Bichir) em busca de sangue para alimentar a filha de “doze” anos dele (Madison Taylor Baez), uma vampira que vive escondida do restante do mundo. O personagem-título de Reginald the Vampire luta para esconder de todos sua nova natureza predatória ao mesmo passo em que curte os poderes que ganha. Uma vez morto-vivo, tem uma “vida” muito mais interessante que a de quando era humano.
Sam Reid (à esq.) e Jacob Anderson em cena de ‘Interview with the Vampire’, com Lestat e Louis, respectivamente. A série adapta o livro de Anne Rice (divulgação/AMC)
Neste ano em que Nosferatu, o filme inovador de F.W. Murnau, completa 100 anos, também estrearam a quarta temporada de O Que Fazemos nas Sombras (FX), derivada da comédia homônima de Taika Waititi, e Vampire Academy (Peacock), que adapta a série literária de Richelle Mead.
As conclusões de A Discovery of Witches (Sky) e de Van Helsing (Syfy), inspirada no icônico caçador de vampiros criado por Bram Stoker, também se deram em 2022. E, no ano anterior, A Missa da Meia-Noite tornou-se uma das minisséries mais comentadas da Netflix.
É oficial: neste momento em que a mitologia dos super-heróis são o carro-chefe da cultura pop, nossa sede por vampiros parece ter sido renovada. Mas, afinal de contas, por que há séculos eles exercem tanto apelo sobre nós?
O que nós fazemos nas sombras
São tempos de revisionismo, o que torna os vampiros personagens ideais para encararmos, por meio da ficção, nossos esqueletos no armário, diz Rodrigo Gonsalves, psicanalista e organizador, com Diego Penha, dos livros Ensaios sobre Vampiros e Zumbis (Luva Editora, 2021) e Ensaios sobre Mortos-Vivos (Aller, 2018). O psicanalista lembra que mortos-vivos e monstros são mencionados em mais de 20 passagens em toda a obra de Karl Marx, um dos maiores pensadores do socialismo, e só em O Capital, os dentuços aparecem em três. Para o filósofo alemão, os sugadores de sangue são os donos dos meios de produção que sugam a energia vital da classe operária.
“A leitura de Marx ainda é muito pertinente. O vampiro talvez esteja ressurgindo, como metáfora, por causa da intensificação dos processos de exploração”, analisa Gonsalves.
Jacob Batalon é o personagem-título de ‘Reginald the Vampire’ (divulgação/SyFy)
O poder predatório que as pessoas podem exercer umas sobre as outras, ou até mesmo as relações parasitárias que podem estabelecer entre si, também são assunto de Parasita (2019), longa-metragem de Bong Joon-ho. Embora o filme vencedor do Oscar não fale sobre vampiros, ele traz essas mesmas dinâmicas. É o espírito do tempo, e a cultura o está refletindo, diz o psicanalista.
Outra característica perturbadora dessas criaturas é o fato de elas operarem fora da ordem natural da vida — a certeza de que todos nós nascemos e morremos. Trata-se de uma potência sobre-humana que atribuímos a esses personagens, pois são seres que não têm os mesmos limites que nós, como leis ou valores morais castradores. No entanto, isso tudo vem com um preço a ser pago.
“Eles são profundamente ambíguos. Eles não conseguem se ver refletidos. Quando chegam a esse estágio, perdem sua humanidade, que é a habilidade de se enxergar. É o máximo da desumanização”, diz Gonsalves. “E ao mesmo tempo, podem fazer coisas que, enquanto humanos, não poderiam. Eles chamam a atenção por transgredirem os pactos.”
Também é possível buscar sentidos para o vampiro, enquanto metáfora revisionista, no conto O Homem de Areia (1817), de E.T.A. Hoffman, e em um importante ensaio de Sigmund Freud publicado em 1919, Das Unheimliche (lançado no Brasil como O Infamiliar, O Inquietante e O Estranho). No texto, Freud trata do retorno de algo represado a partir do enredo de O Homem de Areia, uma obra fundamental para a literatura do insólito, ou seja, gêneros como fantasia, terror e ficção científica.
“O Infamiliar nos é caro porque, para além da oposição entre o que está do lado de dentro e de fora, o ensaio fala de nossas várias camadas subjetivas. Pessoas passam por inúmeras experiências em que se sentem reconhecidas ou não, pertencentes ou não”, explica o psicanalista. “O morto-vivo pode ser visto como um símbolo do que custa a morrer porque precisa de reconhecimento.”
O Que Fazemos nas Sombras deixa isso claro, ele defende, porque os personagens tornam-se ridículos ao estarem fora de seu tempo; eles são aristocráticos, relíquias. É como se a nossa percepção de que alguns assuntos que julgávamos superados fosse rebatida, pois o recalcado precisa ser simbolizado antes de “morrer” de verdade. Quaisquer semelhanças com as eleições deste ano, por exemplo, não são meras coincidências.
Ian Foreman (à esq.) e Madison Taylor Baez protagonizam, com Demián Bichir, ‘Let the Right One In’, adaptação do livro de John Ajvide Lindqvist (divulgação/Showtime)
O protagonista de O Homem de Areia, Nathanael, é perseguido pela criatura folclórica que dá título ao conto. O Homem de Areia sempre quer os olhos de Nathanael, o que mexe em temores que o protagonista sentia em relação ao próprio pai — o medo da castração.
Primeiros caixões
Cid Vale Ferreira, autor de Voivode: Estudos sobre os Vampiros (Pandemonium Editora, 2003) e editor especializado em terror, diz que nossos adorados dentuços são mitos modernos que representam o que cada época teme e abomina. Nos últimos 50 ou 60 anos, ele explica, a alegoria atribuída com mais recorrência ao vampiro é a da transgressão de limites morais e sociais. “É a ameaça que transforma uma jovem tímida e com muitos pudores em alguém com uma sexualidade livre, sem preocupações com casamento, com o que a família e a comunidade vão pensar dela”, conta.
O homem, por sua vez, também é empoderado após o “abraço”, isto é, o ato de o vampiro morder um humano e transformá-lo em seu igual. Um jovem inexperiente e indeciso torna-se ousado e cede a seus desejos, mesmo que criminosos. Nos anos 1970, Anne Rice e Robert Aickman, com o romance Entrevista com o Vampiro e a noveleta Páginas do Diário de uma Menina, respectivamente, são exemplos disso. Eles humanizaram a abordagem do vampiro — e essas obras são até hoje influentes.
No livro de Rice, o vampiro conta sua história de seu próprio ponto de vista, em depoimento a um jornalista. Assim, Louis conta as experiências dele e de Lestat ousando ser o que não ousariam como humanos. Eles caem em experimentações sexuais e chegam a adotar uma criança — a vampira Claudia, eternizada nesse estágio de crescimento.
Antes disso, na primeira metade do século 20, o vampiro encarna o outro — uma figura estrangeira, aristocrática, exótica e sedutora. No clássico filme Drácula (1931), com Bela Lugosi, o protagonista é um imigrante da Transilvânia na Inglaterra em busca de sangue. Segundo Ferreira, são sinais alegóricos do mundo bipolar que culmina na Segunda Guerra Mundial e na Guerra Fria. Antes da invenção do cinema, o vampiro trazia, na literatura e no teatro, reflexos do personagem folclórico que permeia o imaginário de diversos povos nos séculos anteriores.
Pergaminhos
Os primeiros registros de lendas datam do século 17 — documentos como textos em jornais, ensaios filosóficos e tratados retrataram a ausência de embasamento científico por trás do mito de diferentes bebedores de sangue e, é claro, o pânico que eles causaram.
Matt Berry, Natasia Demetriou e Kayvan Novak são Laszlo, Nadja e Nandor, respectivamente, em ‘What We Do in the Shadows’, que adapta a comédia homônima de Taika Waititi (divulgação/FX)
O ghoul habita o imaginário árabe — e muitas vezes é associado à riqueza, pois se alimenta de cadáveres em cemitérios. O vetala dá pesadelos aos indianos. Na Transilvânia — país hoje conhecido como Romênia — do século 15, o príncipe Vlad, o Empalador, tornou-se conhecido pela crueldade com que tratava suas vítimas em batalhas. Na mitologia grega, Lâmia, após ser amaldiçoada por Zeus, tem metade do corpo cobra e outra metade, mulher, e precisa se alimentar de sangue.
“O vampiro surge na expansão para o leste feita pelo Sacro Império Romano-Germânico, que é o território que vai do oeste da França até a Polônia e dá origem a muitos estados de influência cultural germânica, algo que se desenrola até o século 18”, explica o autor de Voivode. “São a Polônia, a Alemanha, a Áustria e a República Tcheca, por exemplo. Esses territórios se dissolveram na Prússia e no Império Austro-Húngaro.”
A pluralidade de povos do Sacro Império Romano-Germânico resulta em um caldeirão de culturas do qual essas primeiras lendas surgem. Na Alemanha tem a dos masticatione mortuorom, ou “mortos que mastigam”, que deixavam os caixões arranhados e mastigados por dentro. Eram pessoas que, em pestilências, eram declaradas equivocadamente mortas e, em seguida, enterradas.
No mesmo país, os nachzehrer, cujo nome também tem relação etimológica com o ato de morder e mastigar, são os espíritos de pessoas que morreram violentamente e retornam exercendo influência maligna em lugares como encruzilhadas e além dos rios — vem daí o uso da palavra “além” como referência a um plano extra-material. Os nachzehrer aparecem também para a própria família e causam sintomas de várias doenças nos vivos, que se enfraquecem e definham até morrer.
Na Sérvia, a lenda do soldado Arnold Paole, que morreu em 1726 ou 1727, em um acidente de carruagem no vilarejo de Medveđa, também colaborou com o folclore. Circulavam boatos de que o defunto havia voltado dos mortos para beber sangue. Quatro testemunhas afirmaram terem sido amaldiçoadas por ele — e elas apareceram mortas depois. Reza a lenda que Paole aparecia para os vivos ensopado do líquido vermelho, que também fluía pelos olhos, nariz, boca e orelhas. Moradores do vilarejo se encarregaram de desenterrar Paole e alvejá-lo com uma estaca de madeira no coração.
Alguns anos depois, foram registradas mais mortes após sintomas como febre e dores nas laterais do corpo; os corpos dessas pessoas foram encontrados em “estado vampírico”, isto é, não estavam em estado de decomposição. Dessa vez, o caso gerou curiosidade da corte, que enviou médicos para investigarem o caso. Eles reviraram túmulos para procurar evidências e, de acordo com o texto produzido a partir da rigorosa perícia, Visum et Repertum, havia um vampiro à solta, o que deu início a uma histeria — mesmo que naquele período pós-iluminismo.
Em 1732, o caso havia chegado à Inglaterra. Na revista The London Magazine, a história foi satirizada com um olhar um bocado marxista, em um artigo intitulado “Political Vampires”, ou vampiros políticos, que brincava que, sim, essas sanguessugas sobrenaturais existiam — e eram os banqueiros, os capitalistas e a classe política. Até o filósofo iluminista Voltaire decidiu dar os seus pitacos sobre o bafafá vindo da Sérvia. Em um ensaio, o francês compila casos de vampiros e criaturas afins e frisa que se trata apenas de folclore. No entanto, o texto só fez alimentar a histeria, bem como os escritos de outros intelectuais que desbancam a tese de que os dentuços existiam de verdade.
Sisi Stringer (à esq.) Daniela Nieves protagonizam ‘Vampire Academy’, inspirada na série literária de Richelle Mead
Ferreira diz que começaram, então, outras aparições dos vampiros — mas na literatura. Se no folclore de vilarejo eles são pessoas que sofreram mortes excepcionalmente violentas e retornaram para tirar satisfação, em contos, poemas e romances, o personagem ganha outros aspectos.
O escritor alemão Johann Wolfgang von Goethe, que ainda fazia sucesso com Os Sofrimentos do Jovem Werther (1774), publicou o poema A Noiva de Corinto (1797), em que uma jovem virgem morre antes de se casar e volta do túmulo para saciar os desejos sexuais que não haviam sido satisfeitos no casamento em vida. Em 1819, surge o conto O Vampiro, de John William Polidori, uma obra seminal para o vampiro literário, que ajudou a consolidar o personagem na ficção gótica, bem como a novela Carmilla (1872), do irlandês Sheridan Le Fanu, com subtexto lésbico.
“Da sepultura lançada à vida,/ À procura do anelado bem,/ Por perdido ser inda querida/ Aspirar todo o sangue que tem”, escreve Goethe em A Noiva de Corinto. “Quando ele morrer,/ Mais hei de querer,/ Sedenta, a debelar gente jovem.”
Tem coisas que é melhor não levar para o caixão.