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A magia de Harry Potter e o desencanto com a autora, pelos olhos de um fã trans

Transfobia de J.K. Rowling afetou relação de fãs com a saga

30.11.2021, às 12H37.
Atualizada em 03.12.2021, ÀS 10H55

Chegaram os esperados 20 anos de vida do primeiro filme da saga do bruxinho mais amado do mundo, Harry Potter, mas tem muita gente triste e revoltada. Eu sou uma dessas pessoas. Dos meus 30 anos, 20 foram dedicados ao universo bruxo criado por J.K. Rowling. Eu sempre digo que sou da primeira geração de fãs de Harry Potter, da turminha que ficou esperando (literalmente) a carta de Hogwarts chegar. 

Lembro-me com nitidez do impacto que foi conhecer esse universo aos 10 anos. Lembro-me de como me senti acolhido e parte daquela narrativa toda vez que eu via Hermione Granger, muito bem interpretada nas telas por Emma Watson. Aliás, quando eu penso no que a saga Harry Potter representa pra mim, eu penso nas duas: Hermione e Emma.

Lá na época eu não fazia ideia de que era uma pessoa trans, mas hoje, olhando para o passado na terapia, eu tenho total certeza de que fui uma criança trans. Olhava meus amiguinhos na escola e não me sentia totalmente incluído naquilo. Mas a cada filme eu me sentia parte daquela escola, daquele universo. Harry Potter me ensinou sobre amor, sobre amizade, sobre aceitação e sobre revolução. 

Mas J.K. Rowling passou a minar tudo isso quando começou com as suas transfobias - em um processo que teve início há dois anos, quando ela defendeu uma feminista radical que havia perdido o emprego por ser transfóbica. Sua polêmica ganhou ainda mais força quando ela criticou o termo “pessoas que menstruam”, que inclui pessoas como eu e outras pessoas trans nas questões da menstruação. Desde então,  ela nunca mais parou, e eu nem acho que vai.

A própria Emma resumiu muita coisa na postagem que ela fez para anunciar o especial de 20 anos que será lançado no primeiro dia de 2022 pela HBO Max. Em uma referência aos fãs da saga, Emma disse: "Obrigada por lutarem para tornar esse mundo um lugar inclusivo e amoroso". E é assim que eu via a saga.

Por isso fico imensamente triste de J.K. Rowling não pensar assim. Não enxergar esse mesmo mundo que eu, Emma e outras milhões de pessoas que até hoje são impactadas pelo amor ao universo bruxo. Fico mais triste ainda de ser um fã incondicional da saga e me sentir expulso desse universo tão importante por ser quem eu sou: um homem trans.

Dia Dipasupil/Getty Images/AFP

A autora J.K. Rowling

Em junho de 2020, quando J.K. Rowling criticou a expressão “pessoas que menstruam”, uma forma de falar sobre menstruação e saúde reprodutiva incluindo pessoas como eu, comecei a ver esse meu mundo amoroso e inclusivo, construído por ela e pelo elenco que deu vida à saga, desabar. 

Eu estava vivendo ali a minha última menstruação, mas já havia contado para todas as pessoas que eu era um homem trans. Hoje eu não menstruo mais por conta da terapia hormonal, mas esse posicionamento de J.K., -- que vale lembrar, não mudou, pelo contrário, só piorou de lá para cá, -- teve um peso absurdo. O que me fez ficar de pé nessa onda de ataques da autora foi a defesa imediata de quase todo o elenco.

Agora que temos data para a reunião dos 20 anos, vi muitos portais e veículos jornalísticos falando que J.K. Rowling foi “deixada de lado” porque foi “acusada de transfobia”. Não existe outra palavra para definir as atitudes da autora além de transfobia. Quando toda uma população que é a vítima de uma opressão fala, quem não faz parte dessa população não tem que questionar ou tentar amenizar algo. É importante darmos nomes às opressões, reconhecer que elas existem e que elas são estruturais e podem acontecer em diversos níveis.

Meu amor por Harry Potter não começou nos livros, e sim pelos filmes. Aliás, só fui ter minha própria coleção dos livros quando eu já era bem adulto, lá pra 2015; antes, eu lia os livros emprestados. Foi um passeio da escola que me levou aos cinemas em 2001 pra ver Harry Potter e a Pedra Filosofal pela primeira vez. 

Daí em diante, em todos os anos esse era o único pedido que eu tinha: continuar vendo a saga nas telonas. Abria mão de todos os presentes, já que sou de uma família pobre e periférica que não podia me dar tudo nessa época. Já adulto, continuei isso até ver Harry Potter e a Relíquias da Morte nos cinemas. Quer dizer, ainda vi os dois filmes da nova franquia de Animais Fantásticos

Eu entendo você que não se desfez de nada da saga, eu mesmo não me desfiz. Quando comecei a trabalhar e ter dinheiro para comprar os presentes, enchi meu guarda-roupas de camisetas, cuecas, meias e outros itens da saga. Até hoje durmo em uma cama totalmente forrada com o jogo de cama da saga e meu edredom também é de Harry Potter. E vai além: o nome do meu cachorro é Dumbledore Severus Snape, uma referência aos dois maiores diretores que Hogwarts já teve. Mas adquirir novos itens… não dá.

Quem é potterhead entende que isso mostra que, de fato, eu sou muuuuito fã da saga. Mas quem é potterhead e uma pessoa trans entende ainda mais a dor que é precisar abrir mão de algo tão importante porque a sua criadora não quer que pessoas como eu tenham direitos. E não estamos falando de direitos absurdos, apenas dos básicos. Como lembrar que homens trans, pessoas transmasculinas e pessoas não-binárias com útero também menstruam. Que nem todas as mulheres menstruam porque temos mulheres trans, travestis e pessoas não-binárias sem útero.

J. K. criou um universo novo, mágico, onde há luta por democracia, contra o autoritarismo, contra a segregação, contra o preconceito, mas não foi capaz de entender o impacto que a sua obra tem sobre as pessoas. Parece que ela escolheu viver em um mundo apenas fantasioso, onde pessoas trans não existem. Ela entende as opressões, ela escreveu sobre isso ao longo dos sete livros, mas anos depois de escrever o primeiro exemplar de Harry Potter, a autora parece ter se esquecido do motivo que a fez escrevê-lo. Harry Potter mudou a vida de muitas pessoas.

Uma vez me perguntaram como eu, pessoa trans e muito fã de Harry Potter, lidaria com a saga a partir das transfobias de J.K. Rowling em diante. Eu respondi que não conseguiria abandonar a saga, isso seria impossível. Mas, já que vivemos em uma sociedade capitalista, não consumiria mais nada que pudesse ser rentável para a escritora. Não compraria mais itens da saga, não compraria novas versões dos livros, não assistiria aos filmes nos cinemas, caso um dia voltassem. E eles voltaram. O primeiro filme da saga que tanto me ajudou a seguir firme nessa sociedade que sempre tentou impedir que pessoas como eu se sentissem aceitas foi exibido novamente nos cinemas. E com muita dor no coração eu decidi continuar com o meu boicote. 

O motivo é simples: nada é mais importante do que o amor pela minha luta, nada é mais importante do que a vida das pessoas trans. Em 2021, para se ter uma ideia, o Brasil ficou pelo 13º ano consecutivo no primeiro lugar do ranking mundial de assassinatos de pessoas trans. 96% desses assassinatos foram de mulheres trans ou travestis, e 82% das vítimas eram negras. Discursos que excluem pessoas trans da sociedade, como os de J.K. Rowling, são, direta ou indiretamente, responsáveis pela morte de pessoas trans.

Nosso assassinato começa muito antes do nosso corpo tombar. Começa na expulsão de casa, na dificuldade de permanecer na escola pelo preconceito enraizado a todas as pessoas que, no mundo bruxo criado pela autora, poderiam ser lidas como pessoas de sangue-ruim. Sem casa e sem estudos, muitas pessoas trans acabam morando nas ruas e nas ruas, vulneráveis, são corpos facilmente executados. 

Os comensais da morte da vida real, que são nossos algozes, estão em todos os lugares. São as pessoas que nos negam afeto, nos negam o direito ao nome, nos excluem das salas de aula ou do mercado de trabalho, nos impedem de usar o banheiro, nos proíbem de acessar um sistema de saúde que nos respeite (por isso, até, usamos a expressão "cis-tema", para lembrar que a sociedade foi feita por e para pessoas cis, e não para nós, pessoas trans).

Todos os dias somos assassinados ainda em vida. Pessoas como J.K. Rowling são os comensais da morte da vida real. São as pessoas que fingem ser aliadas das nossas lutas, mas são as primeiras a virarem as costas para as nossas dores e a nos excluírem do sistema. 

Caê Vasconcelos é homem trans, bissexual, jornalista e cria da periferia zona norte da cidade de São Paulo. É autor do livro-reportagem "Transresistência: Pessoas trans no mercado de trabalho" (Dita Livros) e repórter especializado na editora LGBT+. Atualmente escreve para a Agência Mural de Jornalismo das Periferias, com textos em Yahoo, UOL, Ecoa UOL, AzMina. Foi repórter da Ponte Jornalismo de 2017 a 2021.