Kali Reis e Jodie Foster em True Detective: Terra Noturna (Reprodução)

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Terra Noturna está em seu melhor quando menos lembra True Detective

Texto de Issa López é mais observador e cortante do que as divagações de Pizzolatto

14.01.2024, às 06H00.
Atualizada em 28.02.2024, ÀS 00H45

Pode parecer bobo, mas, entre os muitos cacoetes que definiram a pegada cultural de True Detective, um dos mais pervasivos foi a tendência que a série tinha de garimpar canções folk obscuras para suas sequências de abertura. The Handsome Family (“Far From Any Road” segue sendo um hit aqui em casa), Leonard Cohen e Cassandra Wilson embalaram memoravelmente os créditos das temporadas anteriores da série da HBO, todas comandadas pelo criador Nic Pizzolatto. Apropriado, portanto, que o primeiro sinal do afastamento entre Terra Noturna, quarta temporada da antologia, e suas antecessoras, seja a escolha de canção para a abertura: “Bury a Friend”, de Billie Eilish.

Não só a canção é muito mais recente do que as selecionadas por Pizzolatto (Eilish a lançou em 2019, mesmo ano em que a terceira temporada de True Detective foi exibida), como também marca um divórcio completo da evocação rústico-literária que definia as aberturas anteriores da antologia. Como é da natureza de Eilish, “Bury a Friend” é uma deturpação nervosa de soul, pontuada por uma produção eletrônica minimalista e sombria, que traz à tona uma tensão muito mais urgente, mais terrena, do que as divagações filosóficas que ficaram tão atreladas à True Detective de Pizzolatto.

E bom, veja só: essa não é mesmo a True Detective de Pizzolatto. Com o criador substituído pela mexicana Issa López, que veio parar aqui na força da aclamação crítica de seu filme de fantasia sombria Os Tigres Não Têm Medo, a série naturalmente se transforma, e o que vemos no primeiro episódio - que sai neste domingo (14), às 23h, na HBO e na HBO Max - é uma história de mistério que desce do palanque aspiracional erudito das temporadas anteriores para encarnar em um mundo muito mais ricamente observado, mais direto em mergulhar na vida de seus personagens, e talvez por isso mais emocionalmente cortante. É uma mudança bem-vinda.

Não me levem a mal: a eloquência teatral da True Detective de Pizzolatto teve seu tempo, e nesse tempo atingiu alturas dramáticas inesquecíveis. Mas a True Detective de López simplesmente faz mais sentido para um ambiente televisivo que largamente superou a necessidade de negar a própria linguagem para afirmar a sua integridade artística, que ultrapassou a era dos “anti-heróis complicados” há muito tempo, e que cada vez mais abraça as sutilezas de uma dramaturgia que prefere nos envolver em um mundo fictício pelos detalhes ao invés de ficar atirando na nossa cara quanto dinheiro foi gasto na produção, ou quantos atores vencedores do Oscar estão no elenco.

Para construir exatamente esse tipo de dramaturgia, López acima de tudo pontua o capítulo de estreia com pequenos momentos que situam os seus personagens na contemporaneidade. Um cientista da estação de pesquisa remota na qual se passa a sequência de abertura do episódio está no meio de uma gravação de TikTok culinário quando um evento macabro o interrompe; a Xerife Danvers (Jodie Foster) precisa deixar o seu trabalho para ir buscar a filha na casa da namorada quando a mãe da moça descobre que as duas estavam filmando um vídeo pornográfico no quarto; o policial da velha guarda Hank (John Hawkes) está esperando pela chegada de sua noiva russa que conheceu pela internet; e por aí vai. De novo, pode parecer bobo, mas faz diferença.

López sabe, em primeiro lugar, que é na conexão entre esses detalhes e as pinceladas maiores que definem os personagens e as vidas levadas por eles que mora a chave para fazer o espectador se importar. Em segundo lugar, ela sabe que é no confronto entre o corriqueiro e o macabro, na quebra da normalidade (e, para ser quebrada, ela precisa ser estabelecida - algo que True Detective não tinha entendido ainda), que se cria o horror. E, por fim, que o público é inteligente o bastante para intuir as verdades humanas de um drama sem que elas sejam soletradas para ele pelos personagens.

Nessa troca estilística, os atores de Terra Noturna também são empurrados a entregar performances bem distintas das que consagraram Matthew McConaughey, Mahershala Ali e cia. em temporadas anteriores da série. Daí o acerto na escalação de Foster, que sempre foi afeita a definir suas personagens através de momentos de frustração corriqueiros, a nos mostrar como elas veem o mundo através do humor que utilizam para manejá-lo, dos mecanismos que têm ao seu dispor para evitar o conflito, fugir das partes de sua psique e sua memória que são mais difíceis de encarar.

É exatamente o que ela faz tão bem aqui, e é bonito de ver como sua Danvers impecavelmente escorregadia se choca e se entrelaça com a Navarro de Kali Reisigualmente versada em estratégias de sobrevivência emocional, mas dona de um senso de justiça ressentido que a torna magnética na tela. Nenhuma das duas aparece, em momento nenhum, poetizando sobre os males de um mundo cínico e cruel em uma mesa de interrogatório suja ou um carro de polícia velho - mas ambas parecem inteiramente reais, e é fácil entender as dores incompletas que elas carregam.

Por isso que o trabalho de López parece, por enquanto, mais íntegro do que o de Pizzolatto, que sempre foi um roteirista de grandes sacadas semânticas conectadas por enchimento dramático. Aqui, cada pequena cena importa, até porque grandes cenas não parecem ser a linguagem dramática corrente do texto. De uma série de grandes momentos, enfim, True Detective ganha a oportunidade de ouro de finalmente se tornar, em Terra Noturna, uma grande série.