Leio quadrinhos desde meus 10 anos e o Homem-Aranha sempre foi meu herói preferido. Mas uma coisa sempre me incomodou: por que é tão difícil para os fãs aceitar uma passagem de manto entre os super-heróis?
Esse questionamento retornou recentemente quando li Homem-Aranha: História de Vida, uma HQ escrita por Chip Zdarsky com artes do lendário desenhista Mark Bagley.
O enredo dessa história tem início com a primeira história do herói, lá na revista Amazing Fantasy 15, de 1962, com a origem que todos conhecemos bem: Peter Parker, um garoto de 15 anos, é picado por uma aranha radioativa e se torna o Espetacular Homem-Aranha.
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Porém, ao contrário das cronologias oficiais nos quadrinhos, em que o personagem passa por reboots e fica preso nesse universo onde ele sempre é um adolescente com problemas financeiros que se equilibra entre lutas contra vilões e os estudos, em História de Vida o vemos envelhecer e passar por momentos marcantes de sua vida até sua morte.
Ao terminar a leitura, aquele questionamento que tinha quando era mais novo voltou com tudo. Creio que uma parcela dos leitores de quadrinhos já quis ser um super-herói, e não adianta dizer que nunca pensou nisso quando criança. Vai me dizer que você nunca sonhou em ser o Batman, o Superman ou o próprio Homem-Aranha, por exemplo?
Stan Lee gostava de dizer que o Cabeça de Teia é um personagem muito importante porque muitos se identificam com ele e que qualquer pessoa, independentemente da cor, poderia estar por baixo daquela máscara. Mas sabemos que a realidade não era bem essa né? Sempre que a máscara era retirada, tínhamos um rapaz branco por baixo dela.
Me lembro até hoje de uma história chamada “Heróis Não Choram”, escrita por Paul Jenkins, publicada aqui no Brasil em 2002. Nela, um garoto da periferia do Brooklyn chamado Lafronce, de mais ou menos uns 9 anos, passa por alguns problemas por ter uma família desestruturada. Seu maior tesouro é um card do Homem-Aranha e, sempre que está com dificuldades, ele o aperta e conversa com o Cabeça de Teia, seu amigo imaginário.
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Na história, o garoto imagina o herói revelando-lhe sua identidade secreta, e descobrimos que debaixo daquela roupa de Aranha havia um homem negro. Isso me deixou muito emocionado e feliz quando li, mesmo sendo uma versão imaginária do personagem que apareceu apenas em uma edição. Demorei quase 10 anos para voltar a sentir essa mesma sensação.
A inspiração para Miles Morales
Em 2010, o ator e músico Donald Glover disse que queria interpretar Peter Parker no filme O Espetacular Homem-Aranha e perguntou: "O Homem-Aranha precisa ser branco?". Questionamento que faz muito sentido, já que existem muitas crianças negras, nerds e pobres no Queens sendo criadas por suas tias. Uma campanha on-line foi criada pelos fãs para que Glover ficasse com o papel, mas ela falhou e acabou se tornando uma clássica cena do programa Community. Essa rápida aparição de seu personagem Troy vestindo o traje do herói acabou inspirando o quadrinista Brian Michael Bendis a criar Miles Morales, o Homem-Aranha negro e porto-riquenho.
Em entrevista ao CBR, Bendis revelou que uma de suas inspirações para a criação do personagem foi justamente o papel que um herói exerce no imaginário do público infantil. "Muitas crianças de cor, quando estavam brincando de super-heróis com seus amigos, não tinham permissão para ser Batman ou Superman, porque não se pareciam com eles. Mas essas mesmas crianças podiam ser o Homem-Aranha, porque qualquer um poderia estar sob essa máscara. E agora [com o Miles] é verdade. Significa muito para muitas pessoas".
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Acontece que sempre que estamos falando sobre eventos como esses, surge aquele velho papo de “por que não criar um personagem novo? Precisa mesmo mexer no meu herói?’’. E eu digo que sim, amigo, é preciso passar o manto adiante!
Veja bem, concordo plenamente que o objetivo ideal na luta pela igualdade seria a criação de novos personagens que ampliem a discussão sobre diversidade. Mas é bom lembrar que esse tipo de mudança não acontece da noite para o dia, e é difícil criar para qualquer novo personagem atingir a mesma popularidade.
“Ah Load, mas aí é só fazer boas histórias para eles”. Será que o problema está apenas na falta de boas histórias? Porque a Thor, Kamala Khan, Miles Morales, Sam Wilson, entre outros, sempre tiveram ótimos roteiristas que criaram ótimos arcos, e mesmo assim as reclamações continuaram. Será que foram as histórias que incomodaram essa galera? Ou será que parte dos leitores está tão apegada aos personagens clássicos que não aceita mudanças?
Por isso que repito: não é tão simples assim. Como estamos falando de personagens que existem há mais de meio século, é mais fácil e interessante fazer a troca de manto e explorar a continuidade desse universo (algo que a Marvel tentou fazer depois de 75 anos com a fase All-New, All-Different Marvel!, que consolidou algumas dessas versões dos heróis).
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"Significa muito para meus filhos"
Aumentar a diversidade nas HQs é um processo que vem sendo trabalhado há décadas. Começamos com a criação de diversos personagens coadjuvantes, mas, hoje, temos um número crescente de novos personagens entrando em cena, levando o manto de heróis estabelecidos além com suas próprias histórias. Miles Morales, por exemplo, teve e ainda tem ainda que encarar a responsabilidade de carregar o manto e o peso do nome Homem-Aranha. O mesmo aconteceu com o Falcão, que tem a responsabilidade de erguer o escudo do Capitão América após Steve Rogers escolhê-lo para seguir com seu legado em Vingadores: Ultimato - assim como aconteceu nos quadrinhos anos atrás.
Nem todo mundo consegue perceber o significado de herdar o manto de personagens tão clássicos, mas como o próprio ator Anthony Mackie explicou em uma entrevista ao IMDb: “Significa muito para meus filhos poder ver o Capitão América como um cara negro. Significa muito para mim poder ser esse cara para os meus filhos. Então esse momento foi mais do que apenas ‘olha, estamos atuando’, foi uma coisa especial.”
Para mim, o mais importante é que esses personagens estão tendo uma oportunidade depois de 75 anos, já que o mundo mudou e o público também. Mas ainda há quem reclame das mudanças de etnia, ou até mesmo da passagem de manto, por ter medo de dar espaço pra uma geração de leitores que está vindo e se formando. Talvez, para essas pessoas, seja difícil entender a sensação de nunca se ver representado na mídia de forma positiva. Enxergar a si mesmo em um filme, série, animação ou até mesmo em um pôster para uma pessoa negra ou LGBTQI+. é algo pra se comemorar! E é aí que voltamos pro Miles Morales.
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Morales é só um garoto de 13 anos que curte hip-hop, cinema e quadrinhos, além de ser muito carismático, esperto e dedicado. Pô, ele até estuda numa escola bacana! Na sua versão para o cinema, em Homem-Aranha: No Aranhaverso, melhoraram ainda mais seu background, fazendo o personagem pintar grafites pelo Brooklyn enquanto mostra que é digno de usar o traje do Cabeça de Teia.
E o melhor de tudo? Morales não é só mais um personagem “imaginário”, ou alguém que apareceria apenas por algumas edições e depois cairia no limbo. Se tornou oficial, e agora com a animação - e até um game só dele vindo aí - é mais ainda! Apenas 9 anos desde a sua criação, podemos vestir o traje do Homem-Aranha e fazer um cosplay sem nos preocuparmos em ouvir que “essa versão não existe”. Levando adiante o legado do manto que sempre representou a máxima de que “com grandes poderes, vem grandes responsabilidades’’.
Peter Parker não vai deixar de ser aquele personagem marcante que cativou milhares de jovens desde a década de 1960. Mas agora também temos Miles Morales, um outro adolescente que passa por problemas pessoais e situações reais, do cotidiano de muitos jovens - principalmente os jovens negros e latinos. Agora, por baixo da máscara, eu posso ser o Homem-Aranha. E você também, assim como Stan Lee gostava de dizer.
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