Para muitos fãs brasileiros, o mangá de Chainsaw Man é uma história repleta de ação, sanguinolência e linguagem politicamente incorreta, com direito a muitas ofensas a minorias. Acontece que, na verdade, esse Chainsaw Man não é o mangá criado por Tatsuki Fujimoto e publicado na Shonen Jump, e sim algo “inventado” por fãs brasileiros em uma adaptação cheia de “liberdades”.
Afinal, o que é Chainsaw Man e por que uma versão tão intrusiva acabou conquistando tantos leitores no Brasil, a ponto de muitos acharem que o original é uma versão censurada? Essa é uma história que começa há alguns anos, pouco após a publicação do mangá no Japão.
Chainsaw Man chega ao Brasil
Em dezembro de 2020, durante a CCXP Worlds, a editora Panini realizou um painel para anunciar suas novidades para o ano seguinte e, entre os anúncios feitos, estava um título desejado há muito tempo pelos otakus: o mangá Chainsaw Man, de Tatsuki Fujimoto. A história parte de uma premissa muito simples e mostra Denji, um adolescente muito pobre com sonhos muito simples: ele quer ter um teto, comida e uma namorada. Sua vida muda após encontrar um cachorro demônio que lhe oferece o “poder da motosserra” para destruir criaturas maléficas, e agora ele vai descobrir uma nova camada desse mundo.
Chainsaw Man/Shueisha/Reprodução
Assim que foi revelada, a notícia da publicação de Chainsaw Man no Brasil se alastrou digitalmente por vários redutos de fãs, afinal este era um dos mangás mais celebrados pela comunidade e fazia um sucesso expressivo dentro da Shonen Jump, a mesma revista responsável por projetar títulos como Demon Slayer e Naruto. Muitos estavam ansiosos para colocar as mãos na versão física do mangá e contemplar na estante uma história que já haviam lido antes. Sim, as pessoas já haviam lido antes do lançamento oficial.
Antes de continuar, vale explicar um pouco como funciona o mercado de mangás no Brasil atualmente. Com custos de produção elevados (em parte por causa da pandemia) e o dólar nas alturas, as editoras tomam menos riscos na hora de licenciar títulos e optam por mangás com mais chance de fazer sucesso. Assim, as editoras procuram trazer mangás de autores já famosos (como Junji Ito ou Jiro Taniguchi, presentes no catálogo de várias editoras) ou então histórias já conhecidas por… “outros meios”.
Chainsaw Man/Shueisha/Reprodução
Além de acompanharem as conversas em grupos e fóruns de fãs, todas as principais editoras de mangá no Brasil mantêm um campo de sugestões para os leitores indicarem futuros lançamentos. As empresas estão cientes que há uma parcela de otakus acompanhando os títulos japoneses de formas alternativas, com tradução de fãs, e indiretamente isso acaba fazendo parte do processo. Um mangá muito clamado pelos fãs só é pedido porque muitos já o conhecem de outra forma, e os debates virtuais sobre o título acabam impulsionando a fama da história e facilitando sua vinda por meios oficiais.
Um dos atrativos da pirataria é acompanhar o mangá assim que ele é lançado no Japão, algo que pode demorar anos numa publicação brasileira. Às vezes as editoras até se adiantam para lançar mangás recentes e em publicação, mas ainda assim o mercado de lá é mais rápido. Para combater as “versões de fãs” (e de quebra estimular a leitura de mangá em formato digital), editoras como a JBC têm lançado capítulos digitais simultaneamente com o Japão. Mas a pirataria é um problema mundial e só recentemente as editoras japonesas começaram a engatinhar no processo para tornar o mangá algo mais acessível. A Shueisha lançou no ocidente o site/app MangaPlus, permitindo ao fã lerem de forma gratuita os primeiros capítulos de mangás da linha Shonen Jump (incluindo Chainsaw Man), assim como os mais recentes capítulos lançados no Japão, em inglês e espanhol. Recentemente, o português brasileiro foi introduzido na plataforma, mas apenas em poucos mangás como One Piece.
Chainsaw Man/Shueisha/Reprodução
Ou seja, Chainsaw Man já era lido por uma fanbase fiel no Brasil antes mesmo da publicação oficial, e o barulho causado pelas impressões desses fãs ajudou a tornar o título famoso na internet até finalmente a editora Panini licenciar a história para o Brasil. Poucos meses depois o mangá estava em todas as lojas especializadas, livrarias e bancas de todo o Brasil. A operação deu muito certo e logo no lançamento Chainsaw Man aparecia em destaque na lista de mais vendidos da Amazon. E o sucesso segue até hoje: na data de publicação desta matéria o primeiro volume de Chainsaw Man se encontra esgotado na loja da editora Panini e outras lojas já vendem a edição de estreia por pelo menos o dobro do preço de capa, reflexo da tiragem insuficiente para atender o tamanho do interesse do público.
Com o sucesso, é fácil encontrar avaliações e comentários sobre a edição brasileira de Chainsaw Man pela internet. Entre alguns elogios à encadernação e algumas pessoas debatendo as escolhas de Denji, alguns comentários parecem criticar a editora por supostas “censuras” realizadas na versão brasileira. Estaria a nossa versão sendo podada pela editora ou isso tem a ver com a “outra” versão de Chainsaw Man, aquela que tornou a obra famosa por aqui? É claro que é a segunda opção.
O “outro” Chainsaw Man
Quando um mangá chega oficialmente no Brasil, a editora entrega o título nas mãos de um tradutor que localiza o texto para o português, fazendo algumas adaptações para transpor a vontade do autor para o nosso idioma. O texto ainda passa por uma equipe de revisores e de um editor, responsável por equilibrar a fidelidade com o entendimento de leitores de outra cultura. Já no meio “alternativo” o título é adaptado por grupos de fãs, e às vezes a tradução vem da versão em inglês (ou seja, uma tradução de uma tradução) e alguma mensagem se perde no meio.
Chainsaw Man/Shueisha/Reprodução
No caso de Chainsaw Man, os primeiros fãs tradutores da obra optaram por deixar a linguagem o mais solta possível. Como o protagonista Denji é um adolescente, e como o mangá visualmente traz cenas de ação bastante pesadas (não é estranho vermos pedaços de corpos pulando dos quadrinhos do mangá) num clima bem de filme trash, esses tradutores amadores colocaram algumas brincadeiras no texto com o intuito de descontrair. No começo era apenas um linguajar mais solto, mas no decorrer dos capítulos mais liberdades foram sendo tomadas e Chainsaw Man se transformou em algo bem diferente do original.
Essa versão de fãs chama a atenção por usar expressões e gírias de adolescentes. Uma frase que acabou se tornando meme é “o futuro é pica”, sendo “pica” usado aqui como o sinônimo de “incrível”. Se tivesse ficado só aí, seria mais um caso de tradução livre feita por fãs e pronto, mas essa versão de Chainsaw Man vai além e inclui inúmeros exemplos de piadas inexistentes no original, em momentos nos quais a versão japonesa mostra qualquer outra coisa. Há casos em que "feminista" é usado como ofensa, além de piadas homofóbicas e transfóbicas.
Em uma edição ainda mais intrusiva, fãs trocaram o rótulo de uma bebida que aparece no mangá por uma embalagem de uma famosa cachaça de Pernambuco. Se fizer uma busca nas redes sociais com o nome da bebida e o título de Chainsaw Man, é possível encontrar um número grande de pessoas compartilhando o “meme” e rindo da situação, o que explica por que esse tipo de adaptação tem tantos adeptos no país.
Yu Yu Hakusho/Reprodução
Traduções com brincadeiras regionais não são novidade no Brasil, e um dos maiores expoentes é o anime de Yu Yu Hakusho. Para a versão brasileira o estúdio de dublagem colocou referências a celebridades locais, adaptações para músicas de sucesso (“Ah eu sou Toguro”) e frases tipicamente brasileiras ditas pelo protagonista Yusuke Urameshi, como “a rapadura é doce, mas não é mole não”. No entanto, nessas brincadeiras feitas por profissionais há um cuidado para não interferir na história da obra e nem modificar o contexto, algo que não acontece com a versão de Chainsaw Man feita por fãs.
Os perigos da versão “alternativa”
Não chega a ser surpresa o mangá Chainsaw Man servir de parquinho para fãs criarem uma outra obra através da tradução, afinal o autor Tatsuki Fujimoto parece ter criado uma história propícia para isso. De acordo com Nintakun, autor do antigo blog Mangás Cult, o Fujimoto é conhecido por trabalhar com justaposição entre imagens e situações absurdas, com uma camada de debate sobre assuntos sociais no subtexto, às vezes causando um desconforto em leitores. O blogueiro ainda lembra que uma das inspirações de Fujimoto foi o trabalho de Hideki Arai, outro autor que se utiliza do absurdo para inserir temas sociais em seus mangás.
Enquanto a história de Chainsaw Man pode ser interpretada como um rapaz com poder de motosserra destroçando demônios enquanto busca um lar, uma comida e “apertar um par de seios”, na verdade Fujimoto tem um outro intuito com a história. “No subtexto do mangá, vemos Fujimoto tendo autoconsciência do quão ridícula é essa situação, apesar de abraçar isso pra tratar de um assunto mais sério, que é a falta de objetivo do Denji. Quando o protagonista finalmente consegue realizar seus sonhos, vê que aquilo foi nada demais, que talvez não tenha valido o esforço. É hora de avançar para a próxima meta”, argumenta o entusiasta do autor. Com um subtexto mais perceptível por leitores adultos, podemos entender o motivo de tradutores mais jovens ignorarem essa camada e focarem apenas no lado estiloso e violento.
Chainsaw Man/Shueisha/Reprodução
Nintakun acredita que as primeiras traduções abraçaram esse lado mais "esdrúxulo" do mangá e brincaram com isso, mas acabaram tomando liberdades demais, a ponto de desvirtuar o original. “Além disso, a equipe que fez essas primeiras traduções provavelmente deve ser majoritariamente composta de jovens que fazem parte de grupos similares a subcultura de ‘chans’ e coisas do tipo, onde ainda existe misoginia internalizada, LGBTQfobia e coisas assim, e nessa onda de querer brincar com o texto ‘zoeiro’ do mangá, isso acabou vazando pra lá também, infelizmente”, lamenta.
Essa teoria vai de encontro com a do antropólogo Vlad Schuler, que já estudou otakus e acompanha o meio. Para o estudioso, qualquer obra de arte, incluindo traduções, carregam consigo "parte dos seus tradutores". Se forem feitas por pessoas acostumadas a esses discursos de ódio, elas "podem achar normal e natural inserir isso num diálogo em que, na visão deles, isso faria sentido".
Para os dois entrevistados para essa matéria, há um impacto dessas traduções na comunidade otaku. Nintakun acredita que isso pode "fazer com que as pessoas tenham uma interpretação errada dos temas e do subtexto do mangá ou que essa tenha sido a real intenção do autor, sendo que não é o caso e quem conhece o trabalho dele mais a fundo sabe que ele não é assim". Fujimoto é bastante engajado em causas sociais e provavelmente não colocaria ofensas a minorias em um mangá de sua autoria. Além disso, segundo o blogueiro, conferir uma tradução deturpada pode "causar uma primeira impressão ruim sobre o trabalho de um artista que tem muito a nos dizer e é provavelmente um dos nomes mais promissores da indústria atual dos mangás".
Chainsaw Man/Shueisha/Reprodução
Além de uma má primeira impressão, essas liberdades podem causar danos quase imperceptíveis num primeiro momento. “Existe um risco sério de traduções deste tipo normalizarem ainda mais falas e atos machistas e homofóbicos dentro da comunidade. É muito bem documentado que o tipo de discurso presente na mídia influencia o tipo de discurso considerado aceitável pelos consumidores“, argumenta Vlad quando perguntado sobre o impacto dessa tradução nos fãs. O antropólogo ainda destaca que, para minimizar os danos, faz mais sentido a série ser divulgada com o uso de traduções mais fiéis ao original. E é aí que chegamos na versão oficial lançada pela Panini.
O que a Panini diz sobre isso?
Como essa versão de fãs acabou se tornando muito popular, houve quem acreditasse que Chainsaw Man é aquilo e que a edição brasileira da Panini era uma versão “censurada” do original. Lembra da já citada cena do "o futuro é pica"? Recentemente uma imagem dessa cena com uma suposta tradução da Panini viralizou nas redes sociais. Nela, o personagem dizia "o futuro é supimpa" no lugar da frase que se tornou meme graças à versão dos fãs.
Chainsaw Man/Panini/Divulgação
Para mostrar o lado oficial dessa questão toda, também conversei com a editora Panini, que respondeu alguns questionamentos sobre o caso de Chainsaw Man através de sua assessoria de imprensa. A Panini ressaltou que reclamações de leitores sobre "censura" ao mangá de Chainsaw Man não apareceram nos canais da editora, e explicou que a tal tradução que viralizou é falsa, até por fazer parte de um volume com lançamento previsto para setembro no Brasil.
A pedido da matéria, a Panini ainda respondeu uma outra comparação feita nas redes sociais por um leitor com base na versão dos fãs, e os responsáveis pelo mangá oficial apontaram que a tradução alternativa carregou nas tintas, inserindo linguajar chulo. “Sendo uma situação em que o personagem conversa com sua superior, ele não falaria um palavrão”, explicou a editora.
Para a Panini, Chainsawn Man não é necessariamente um mangá desafiador na hora de traduzir, cabendo somente uma adaptação no linguajar dos personagens, deixando um pouco mais informal. Quando perguntei sobre as traduções alternativas e se elas dificultavam o lançamento original, obtive como resposta que a Panini tem "estrutura para garantir a qualidade dos mangás”, pois tem comprometimento com os consumidores e também com os licenciantes. “Há tradutores, editores e revisores envolvidos, seguimos a obra original o mais fielmente possível, sempre em cima de arquivos oficiais", defendeu.
Mesmo assim, os responsáveis pelos direitos de Chainsaw Man compreendem o contexto do mercado brasileiro e entendem a existência dessas traduções alternativas. "Sabemos também que as traduções alternativas podem ser o primeiro contato de uma pessoa com uma obra, até porque eles possuem ritmo muito mais acelerado. Nós temos o processo de licenciamento, contratos, negociação etc. Então, a comparação do fã pode ser inevitável às vezes. Por isso, cabe a nós seguirmos nossa linha de tradução fidedigna e tirar dúvidas de usuários como em casos de Chainsaw Man", concluiu a editora brasileira.
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Embora já tenha causado todo esse rebuliço, Chainsaw Man ainda está no começo de sua trajetória de sucesso. O mangá está sendo publicado no Brasil pela Panini, como já foi dito, mas há também um anime chegando nos próximos meses. O primeiro trailer da animação feita pelo estúdio MAPPA (de Jujutsu Kaisen) deixou todos os fãs de boca aberta e esse já é um dos animes mais esperados das próximas temporadas. Talvez, pelo menos no meme, os fãs acertaram ao dizer que o “futuro é pica”.