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Mangás e Animes

Crítica

Spy x Family é tocante e engraçado, ainda que desequilibrado

A adaptação do mangá de Tatsuya Endou foi um dos destaques de 2022.

13.01.2023, às 17H15.

A prova de que Spy x Family é uma produção grandiosa é que, mesmo com 2022 sendo um ano bizarramente lotado de ótimos animes e grandes surpresas, ele ainda conseguiu ser um dos maiores destaques do período. Mesmo assim, faltou um pouquinho para que ele fosse o anime do ano, mesmo sendo uma aguardadíssima adaptação de um dos mangás de maior sucesso dos últimos anos da Shonen Jump. E ele talvez conseguisse a proeza, se abraçasse o que há de melhor em seu material fonte.

Spy x Family é a versão animada do mangá de Tatsuya Endou, publicado originalmente em forma digital na plataforma Jump+ — o que, por si só, já é um “case” interessante, já que ele é um fenômeno de sucesso mesmo não saindo na revista principal física, casa de títulos como One Piece e Demon Slayer. Ele conta a história de um espião, Twilight, que precisa se infiltrar na nação inimiga (a obra cria sua própria “Alemanha dividida pelo muro” aqui) e conseguir informações com um chefe de estado. Sua missão envolve criar uma família falsa para se aproveitar das normas sociais rígidas do país, infiltrar um “filho” na escola de elite e, por fim, conseguir fazer uma engenharia social e chegar ao alvo. Ele adota um nome falso, Loid Forger, e também uma menina, a Anya, que foi usada em experimentos científicos e tem poderes telepáticos; depois acaba entrando em acordo com uma mulher, Yor, que é secretamente uma assassina profissional, para servir de “mãe”. Apenas Anya sabe os segredos dos “pais”, graças aos seus poderes.

Não faltou talento na adaptação. Havia certa pressão para o anime alcançar as expectativas dos fãs, e foram reunidos dois grandes estúdios da atualidade, com histórico de boas produções: o Wit (Attack on Titan, Vinland Saga, Bubble) e o Cloverworks (The Promised Neverland, Wonder Egg Priority). Na direção, Kazuhiro Furuhashi, responsável por nada menos que o Hunter x Hunter de 1999 e o recente e elogiadíssimo Dororo. Spy x Family estreou em abril de 2022, teve uma pausa no meio, e concluiu ao fim do ano, com um total de 25 episódios.

O resultado dessa união é aparente e imediato: o anime captura muito bem esse mundo meio anacrônico, perdido numa espécie de anos 1950 alternativos, além de ser relativamente bom com a expressividade dos personagens (mais sobre isso daqui a pouco) e, principalmente, fazer um trabalho exemplar na animação de movimentos e de cenas de ação. A premissa pode ser “bobinha”, mas o roteiro constantemente exige que se crie cenas de luta, de operações secretas, perseguições de carro e tudo mais, e nesse quesito, o anime sempre tira notas máximas. Claro, os designs originais dos personagens de Tatsuya Endou também ajudam — além de naturalmente bonitos, também são muito dinâmicos e dão muita liberdade à animação, mas eles também foram muito competentemente transpostos para o audiovisual.

A questão é que Spy x Family é, até certo ponto, uma obra que se apoia numa espécie de “tripé”. Ele precisa ser muito bom em três coisas bastante distintas, e os melhores momentos do mangá original são um equilíbrio perfeito dos três. Primeiro, e (eu diria) acima de tudo, ele tem que ser uma boa comédia. Segundo, tem que ser um bom drama familiar. E, por trás de tudo, dando um suporte geral para toda a premissa, ele precisa ser uma boa história de espionagem em algum nível.

Mas, talvez por conta de ser muito complicado para uma comédia disputar com o típico shonen de porradinha ou adaptação de light novel, ao assistirmos Spy x Family, fica mais ou menos clara uma escolha da produção, que prioriza um dos elementos em detrimento dos outros dois. O anime se apoia muito mais na história da formação da família disfuncional dos Forgers que em ser propriamente uma comédia. Uma coisa que deve ser admitida é: o que o anime tenta fazer, ele consegue. Acompanhamos gradualmente o desenvolvimento de Loid, de um homem convictamente frio e alheio às relações humanas a um “pai” preocupado e empático. É nítida a diferença dele ao fim da temporada. A própria Yor, também, é uma personagem que (para o bem ou para o mal) tem sua faceta de assassina profissional totalmente deixada de lado ao longo da trama (só o que resta é sua habilidade marcial sobre-humana) em favor de suas tentativas de ser uma boa mãe e boa dona de casa. Todo momento em que o trio demonstra estar se aproximando e se tornando uma família de verdade, mesmo que a contragosto, é bonito e tocante, além de ser muito interessante acompanhar o processo pelo qual essas linhas vão se borrando: todos eles entendem, de certa forma, que o que eles têm é um acordo, um teatro, mas vão gradualmente se importando uns com os outros de verdade, e é bonito de ver. Funciona.

A questão é que o anime parece muito mais querer emocionar e impressionar do que qualquer outra coisa. Toda a exuberância da produção e as tentativas (muitas vezes bem-sucedidas) de fazer chorar tomaram muito do tempo da produção, que se esqueceu de apurar seu timing cômico. O início do anime é a pior parte, nesse sentido. Muitas vezes, as piadas estão lá, no texto, mas a direção não dá ênfase a elas; não há uma pausa para que as entendamos como piada, não há um close numa expressão mais engraçada da Anya... ela só acontece, meio que no canto da tela, os atores lendo as falas como um diálogo
normal, e passa. 

Com o tempo, o anime fica mais engraçado, muito pelo fato de o original contar com vários arcos protagonizados por Anya. Porque, convenhamos, a Anya é, de longe, a melhor personagem da coisa toda. Todas as suas empreitadas para ficar amiga do menino Damian (filho do político que o Twilight precisa acessar) são hilárias (o sensacional episódio da queimada é o ponto alto do anime) e ela é muito mais carismática que todo o resto do elenco. Se o anime fosse mais esperto, ele seria o “Show da Anya”. Anya é a única personagem que consegue fazer comédia “sozinha”, mas a produção passa longe de extrair o máximo de suas várias caras e bocas, que os fãs adoram compartilhar nas redes sociais — já Loid só arranca risadas sozinho em seu arco do tênis, e Yor tem algumas cenas aqui e ali (os flashbacks com o irmão são muito bons), mas, no geral, é usada apenas para uma só piada, repetida à exaustão.

Isso faz com que seja um tanto estranho perceber, na segunda sequência de abertura do anime, quase um desvio total de propósito, fazendo com que ele pareça o “Show da Yor” e aposte muito na popularidade dela e em seu ótimo design, numa sequência que faz parecer que Spy x Family é um This Is Us em forma de anime, em vez de uma comédia que envolve um menino de 6 anos com cara de 20 e cujo pai parece o M. Bison.

Mais uma vez, é bom que se ressalte: o que o anime faz, ele faz bem. Terminamos essa temporada torcendo para a família aceitar que é, de fato, uma família. Tanto Loid quanto Yor estão mudados (...o Loid, um pouco mais, por ser um personagem mais completo; a Yor, como já disse, é resumida a uma piada repetida várias vezes). E a série faz uma boa escolha ao terminar a temporada com um gancho que não só nos instiga a continuar assistindo como completa uma primeira fase daquilo que foi o estopim de tudo: a missão do Twilight alcança, finalmente, seu alvo, e um passo importantíssimo é dado, e tudo com a ajuda da Anya e de sua empatia natural (do jeito dela), que reverberam em seu pai postiço. Esses elementos funcionam, e funcionam bem. Mas, com um pouquinho mais de esmero em sua comédia, Spy x Family com certeza teria mais que alcançado — teria talvez até excedido todas as já altas expectativas sobre si. 

Nota do Crítico
Bom