The Boy and the Dog/Reprodução

Mangás e Animes

Artigo

Inteligência Artificial em animes e mangás: benefício ou ameaça?

IAs já estão entre nós trabalhando no mercado de anime e mangá, mas é importante pensar no lado negativo desse “avanço tecnológico”

15.02.2023, às 15H00.

Em 31 de janeiro foi lançado pela Netflix o curta animado The Dog & The Boy (ou Inu to Shounen em japonês). Produzido pelo Wit Studio (de Spy x Family), a animação de 3 minutos acabou se tornando o assunto do momento no meio otaku. Não por causa da qualidade técnica dessa criação de Ryotaro Makihara, mas sim porque as imagens de fundo foram todas criadas por uma Inteligência Artificial.

Com ferramentas como o chatGPT ganhando popularidade na mídia pela sua capacidade de formular textos que simulam os feitos por um humano, o debate sobre o uso de Inteligência Artificial (ou IA para os íntimos) veio à tona. O quanto ele está sendo utilizado como forma de baratear custos em vez de facilitar o trabalho dos artistas envolvidos em um anime?

I.A nos animes (e suas polêmicas)

A Inteligência Artificial está revolucionando a forma como os animes são criados e compartilhados com o público. Estúdios de animação estão implementando a tecnologia de IA para automatizar tarefas repetitivas e tediosas, como o desenho de quadros e a criação de personagens. Com isso, os profissionais humanos são liberados dessas tarefas mecânicas e podem se concentrar em aspectos mais criativos e valorizados do processo de produção de anime, como roteirização e direção artística. A utilização da IA neste setor permite uma distribuição mais eficiente do trabalho e uma alocação mais estratégica dos recursos humanos. O uso de Inteligência Artificial avançou tanto que você pode nem ter notado, mas esse parágrafo em itálico foi escrito por uma IA (!).

Como era de se esperar de uma Inteligência Artificial, há ali uma visão bastante positiva a respeito de sua utilização no lugar de mão de obra humana. Quando a Netflix lançou o curta do garoto e do cachorro, houve uma explicação de que aquilo se tratava de um esforço "experimental" para "ajudar" a indústria dos animes, que teoricamente sofre de falta de mão de obra. A declaração do serviço de streaming desagradou quem acompanha com mais afinco esse mercado, pois se trata de uma meia verdade.

A Netflix publicou um artigo em seu blog detalhando como surgiu o curta e como a história nasceu de um projeto que visa melhorar os processo de produção de uma animação. As respostas, no entanto, parecem ignorar problemas comuns na animação japonesa, como a falta de mão de obra e a quantidade insalubre de trabalho. Hiroshi Tanaka (diretor de fotografia de Ghost in the Shell: Stand Alone Complex) explicou que a animação japonesa sofre porque seus animadores estão em múltiplos trabalhos ao mesmo tempo, e que focar em um único anime deve permitir um trabalho criativo de melhor qualidade para os artistas. No mesmo texto o serviço de streaming reforça o discurso, afirmando que "a falta de humanos para a indústria de anime tem sido um problema" e que a utilização de IA pode flexibilizar uma produção. A justificativa bonitinha parece pouco condizente com o mercado de animadores no Japão.

Os profissionais são expostos a horas e horas de trabalhos em condições péssimas porque é uma indústria que paga pouco a seus funcionários. Some a isso as constantes terceirizações e também os inúmeros problemas de produção, como no caso de O Tio de Outro Mundo (Netflix) que passou semanas em hiato por uma suposta epidemia local de Covid-19 no estúdio de produção, isso sem falar nos outros animes que mal estão conseguindo cumprir a agenda de exibição semanal. O problema não é que os animadores e profissionais estão em muitos trabalhos simultâneos porque querem, e sim porque são mal pagos nessa indústria que vem exigindo excelência cada vez mais.

A decisão de automatizar o trabalho com uma Inteligência Artificial ainda esbarra em outro problema grave: nenhuma IA cria um trabalho do éter, e sim se baseando em conteúdo já existente. Ou seja, aqueles fundos do curta metragem do Wit Studio têm participação de trabalho humano, mas sem qualquer crédito ou remuneração.

O futuro “ficcional” de Carole & Tuesday

Quando o anime Carole & Tuesday, um drama misturado com ficção científica, foi lançado em 2019 não imaginávamos que a tecnologia avançaria tão rápido a ponto do nosso “presente” estar tão perto deste “futuro”. Nessa produção de Shinichiro Watanabe (Cowboy Bebop) acompanhamos as garotas Carole e Tuesday que sonham em produzir músicas autorais e humanas em um mundo tomado por trabalhos criados por inteligência artificial.

Divulgação

Carole & Tuesday nos apresenta um mundo que poderia muito bem ser o nosso, com grandes empresas usando IAs e algorítimos para criar obras que atraiam o público alvo, com batidas e letras friamente calculadas. O anime (claro) apresenta uma visão idealista de que a obra composta por uma mente humana consegue “vencer” esse adversário eletrônico, mas a Inteligência Artificial pode ir lentamente ocupando espaços e, consequentemente, empregos.

O mundo de Carole & Tuesday está longe de parecer tão distante. O Fantástico exibiu no final de janeiro uma matéria sobre o chatGPT, e convidou alguns artistas da música brasileira para um experimento de deixar a ferramenta fazer algumas criações artísticas. "Eu diria que é assustador", comentou o músico Péricles ao ver a Inteligência Artificial escrever na sua frente uma letra de samba.

A máquina compôs uma música bem simples e sem muita personalidade, com versos como "o fim de semana é a minha felicidade/ É tempo de sambar, de amar e dançar", mas impressiona pela velocidade com que é feito. Perguntado pelo repórter se incorporaria o chatGPT em seu processo criativo, Péricles teve uma posição parecida com a das protagonistas do anime de Shinichiro Watanabe: "eu prefiro ainda usar o método que sempre deu certo, que é a inspiração na hora certa (...). É uma ferramenta que merece respeito, merece atenção, mas o fator humano vai sempre prevalecer". Também entrevistado pela matéria da Globo, o sertanejo Sorocaba estava mais aberto à tecnologia: declarou que utilizou IA para determinar seus figurinos de shows e ainda afirmou que futuramente a ferramenta acabará sendo utilizada por compositores.

Paidon: “revivendo” Osamu Tezuka

Quem acompanha o mundo otaku já deve ter ouvido o nome de Osamu Tezuka, um dos principais autores de mangás e um dos responsáveis por popularizar essa mídia que tanto amamos. Ele é criador de obras como Astro Boy, A Princesa e o Cavaleiro, Dororo, Buda, Dom Dracula e outras centenas de histórias. Infelizmente o mangaká faleceu no final dos anos 1980, então nunca mais poderemos ver seu traço icônico e sua narrativa em um mangá novo, certo? Então…

Em 2020 o mangá Paidon estampou a capa da revista Morning, da editora Kodansha. Até aí tudo normal, mangás novos são lançados com frequência no Japão, mas esse era um mangá inédito de Osamu Tezuka criado através de uma inteligência artificial que aprendeu o estilo do autor. Makoto Tezuka, filho do mangaká e responsável pela Tezuka Productions, foi quem teve a ideia do projeto. Em uma matéria publicada no site Kioxia, o herdeiro de Tezuka comparou o uso da Inteligência Artificial com outras mudanças no mercado audiovisual, como a utilização de Computação Gráfica em filmes. Por fim, ele ainda previu que em até dez anos a IA será comum nesse meio.

Paidon é uma história bem simples, com o personagem título sendo uma pessoa marginalizada pela sociedade tecnológica resolvendo alguns mistérios, mas é surpreendente como uma IA foi capaz de criar o roteiro, o protagonista e tudo mais. O projeto foi finalizado por humanos seguindo as instruções da máquina, e por isso ainda não é possível falar que se trata de um mangá totalmente criado por Inteligência Artificial, mas é quase.

Para Toshihiro Miura, o editor da revista Morning, os personagens de Paidon têm a energia do Tezuka, e muitos leitores apontaram que era uma história que trazia uma certa “nostalgia”. Mesmo com os avanços tecnológicos impressionantes, Miura acredita que ainda há um grande caminho pela frente, mas que no futuro é possível que uma IA consiga produzir um mangá. "Se uma IA roteirista surgir, eu adoraria trabalhar com ela", respondeu Miura no mesmo artigo do site Kioxia. Essa empolgação com o futuro deu uma baqueada quando o profissional foi perguntado se futuramente uma Inteligência Artificial poderia fazer o seu trabalho de editor - e aí ele comentou que seria algo mais complicado.

É curioso como Osamu Tezuka foi escolhido como “experimento” para a utilização de Inteligência Artificial em mangás porque ele foi o autor por trás de Astro Boy, um herói tecnológico. E no mangá, em meio às lutas do bem contra o mal, a tecnologia nunca é mostrada como má, e sim como uma ferramenta que depende de como os humanos a utilizam. Agora resta saber se o mercado com as IAs no nosso mundo real vai permitir que os trabalhadores tenham realmente mais tempo para se dedicar criativamente a projetos ou se é apenas uma forma de baratear custos e causar demissões. O futuro não parece ser tão show assim.

Onde conferir?

Caso tenha se interessado pelo excelente Carole & Tuesday, o anime de 24 episódios está disponível na Netflix, tanto com legenda quanto com dublagem em português. A plataforma de streaming também está lançando O Tio de Outro Mundo à medida que novos episódios chegam no Japão, ou seja, aos trancos e barrancos.

Já o mangá Paidon (que também pode ser transcrito como Phaedo) não foi lançado por aqui, mas é possível ler em inglês neste site.