A jovem prodígio da ciência Lunella Lafayette cria (por acidente) um gerador de portais interdimensionais, o que a leva a conhecer o tiranossauro vermelho que ela batiza de Demônio (ou D, para os íntimos). Usando suas melhores invenções tecnológicas e a força bruta do seu novo bicho de estimação - além da esperteza da melhor amiga influencer, Casey, que a transforma em uma celebridade no bairro -, Lunella passa a combater supervilões (e as dificuldades do amadurecimento) como a heroína Garota da Lua.
Esta é a premissa de Garota da Lua e o Dinossauro Demônio, série de animação que marca a primeira parceria oficial entre o Marvel Studios e a Disney Animation. Produzida por Laurence Fishburne (que também dubla o vilão Beyonder), a produção lançou os seus primeiros quatro episódios no Brasil, pelo Disney+, nesta quarta-feira (15) - e, se você me perguntar, ela é a melhor coisa a sair da Marvel em muito, muito tempo.
Abaixo, tento explicar por que Garota da Lua é tão especial, além de te contar um pouco mais sobre a produção. Vem comigo antes de dar o play.
1. Dá para contar uma “grande história” contando histórias pequenas
Talvez seja o fato que Garota da Lua foi feita para lançamento inicial no Disney Channel americano, ao invés de no Disney+, mas a série segue o melhor estilo das animações clássicas de canais lineares: cada episódio de 20 e poucos minutos apresenta um novo conflito e já o resolve, seja esse conflito a chegada de um novo vilão ou algum obstáculo na vida pessoal de Lunella.
Não são de hoje as reclamações de que o MCU, obcecado com a continuidade de sua mitologia e do(s) seu(s) universo(s) compartilhado(s), aliena espectadores casuais e cansa até os fãs mais fiéis. Às vezes, a gente só quer se divertir um pouco, sem pensar nos quase 20 anos de filmes e séries que precederam a produção mais recente da franquia, ou nos 20 anos de filmes e séries que a sucederão.
É verdade que a conexão de Garota da Lua com o restante do MCU é tênue - Lunella menciona os Vingadores e a SHIELD em diálogos passageiros, enquanto Cobie Smulders deve reprisar o seu papel como Maria Hill em um episódio futuro da série -, mas não é só daí que vem o alívio que o espectador sente ao perceber a forma como ela conta as suas histórias. Trata-se de uma readaptação ao ritmo gentil de uma história que constrói o seu arco maior através de capítulos autocontidos.
Há construção de universo aqui - vilões são “guardados” para aparições futuras, o ambiente em que a história se passa ganha granularidade com cada episódio, e a nossa heroína está sempre em fluxo de transformação. A diferença é que, enquanto o MCU cansa com sua insistência de que tudo o que acontece na tela é importante “para o quadro maior”, Garota da Lua nos diz exatamente com o que devemos nos importar só passageiramente, e no que devemos manter nossos olhos a longo prazo.
2. Se você é uma adaptação de HQs… bom, seja uma adaptação de HQs!
Garota da Lua e o Dinossauro Demônio, do Disney+ (Reprodução)
Os quadrinhos de Garota da Lua e o Dinossauro Demônio representam um dos maiores sucessos editoriais da Marvel na última década. Essa encarnação dos personagens estreou em 2015, criada pelos roteiristas Brandon Montclare e Amy Reeder, além da artista Natacha Bustos, e os dois protagonizaram sua própria revista por quatro anos e 47 edições, finalizando em 2019 e partindo daí para crossovers com personagens como Gwenpool e supergrupos como os Guerreiros Secretos.
Em time que está ganhando não se mexe, então a versão para a TV de Garota da Lua segue muitos dos preceitos que fizeram os quadrinhos se conectarem tanto com o público - a começar pela arte, que realiza o Lower East Side nova-iorquino em cores vibrantes e formas exuberantes, sem medo de ocupar um espaço mais impressionista do que realista. Em termos narrativos, espere um estilo bem-humorado sem pender para o cinismo de um Deadpool ou um Guardiões da Galáxia.
Enfim, como as revistas nas quais se baseia, a série apresenta uma visão esteticamente ousada e emocionalmente sincera da história clássica de super-heróis, em completo contraste com a ideia pasteurizada de “adaptação de quadrinhos” que a Marvel vem tentando vender nos cinemas. Como uma personagem até aponta em um dos episódios: “Não é preciso se encaixar para pertencer”.
3. Aliás, se você é uma adaptação… bom, adapte!
Garota da Lua e o Dinossauro Demônio, do Disney+ (Reprodução)
Ao mesmo tempo em que acerta ao se assumir uma história tirada dos quadrinhos, Garota da Lua mostra que não tem medo de ajustar situações e personagens para a mídia em que se encontra. O melhor exemplo é o elenco de vilões enfrentado por Lunella, que inclui figuras tiradas direto das revistas da Marvel, como Aftersock, Rat King e Beyonder - este último adotado como nêmesis da protagonista graças a uma sugestão do próprio Kevin Feige -, mas em versões consideravelmente alteradas para funcionar melhor no contexto e no estilo particular da série.
A vantagem, como já descobriu James Gunn em suas próprias adaptações de quadrinhos, é que lidar com personagens mais obscuros da mitologia quadrinhesca ajuda a manter a ira dos fãs puristas (relativamente) afastada. Mesmo assim, fica a lição para o universo Marvel em geral: TV e cinema não são quadrinhos, e uma adaptação não deveria ter medo de adaptar - até porque não é só nos vilões que Garota da Lua demonstra essa maleabilidade.
Um dos aspectos mais bacanas da série é como ela aproveita o fato de ser uma produção audiovisual para adicionar uma camada musical às aventuras da personagem, o que simplesmente não teria como existir no papel. Da canção de abertura viciante às batalhas finais de cada episódio, transformadas em números musicais super estilizados (incluindo uma ao som de “Just the Two of Us”), Garota da Lua é dinâmica e rítmica como poucas produções contemporâneas.
4. Nem toda produção precisa ser para todo mundo…
Garota da Lua e o Dinossauro Demônio, do Disney+ (Reprodução)
Embora muita gente reclame da uniformização do universo cinematográfico Marvel, pouco se discute o motivo por trás desse problema: considerando (com razão) que fazem o entretenimento de massa mais popular do mundo ocidental, Kevin Feige e cia. tentam produzir sempre um conteúdo que agrada a todos e não aliena ninguém. O resultado é a limagem de quase todas as particularidades verdadeiramente arriscadas de cada projeto, do trabalho de cada artista, uma redução de cada história e cada tom ao mínimo denominador comum.
Garota da Lua e o Dinossauro Demônio, em contraste,não é feita para todo mundo e sabe muito bem disso. Acima de tudo, ela é feita para o público infantil e pré-adolescente, simplificando sua abordagem de temas sociais e emocionais para uma linguagem que é clara sem ser condescendente - qualquer audiência adulta que tropeçar na série ou se adapta e aceita esse tom, ou troca de canal.
Para além disso, no entanto, Garota da Lua é feita para o público que é capaz de aceitar todas as particularidades que citamos nos itens anteriores da lista (e está tudo bem se você não faz parte desse grupo). Se você não quer uma história de super-heróis episódica, colorida, musicada, acessível para todas as idades e que toma largas liberdades em relação ao material original, bom… há muitas outras opções por aí.
Esta série é feita para o público que a quer, e não para todo público que pode porventura apertar o play.
5. … Mas toda produção pode incluir todo mundo
Garota da Lua e o Dinossauro Demônio, do Disney+ (Reprodução)
Pois é, eu deixei esse item aqui por último de propósito. O fato é que, se você não quer uma história de super-heróis que inclua personagens de todas as etnias, origens, culturas, expressões de gênero e sexualidades… bom, Garota da Lua não é para você.
Uma das protagonistas da série é uma menina latina que tem pais gays, a família central é negra, figuras coadjuvantes incluem uma jovem transgênero, outra estudante muçulmana, e também um personagem não-binárie que usa pronomes neutros. Questões como autoestima negra diante do preconceito estético, ativismo antirracista e gentrificação são centrais em episódios específicos - com a série sempre adotando um ponto de vista progressista sobre todos eles.
Arte-como-ativismo é parte importante do ethos de Garota da Lua e o Dinossauro Demônio, da forma como ela foi concebida pelo showrunner Steve Loter (Kim Possible) e pelo time de roteiristas inteiramente composto por mulheres não-brancas que ele reuniu para conduzir a série. Caso isso seja um problema para você, poupe a si mesmo - e a todos nós - e escolha não apertar play na nova série do Disney+. Ela está muito bem sem você, obrigado.