A década de 2010 acabou e os quadrinhos ainda estão aí. Nos últimos dez anos, a internet avançou, você passou a fazer quase tudo no celular, as opções na TV cresceram e as bancas de revista entraram em extinção. Se considerar tudo isso, é incrível que você ainda leia gibi, de papel, na mão. Além do mais, na nossa economia capenga, é incrível que a gente continue lendo gibi de papel, na mão e brasileiro.
A regra é a de sempre: enquanto houver conteúdo bom, nós vamos atrás. E o quadrinho brasileiro não decepcionou nesta década. A ascendente que começou no início do século continuou nos anos 10. Brasileiros ganharam prêmios nos EUA, na França, na Alemanha e no Japão; o Brasil ganhou uma nova e importante premiação de HQ; o número de editoras aumentou e autores independentes acharam novas maneiras de se financiar; os festivais cresceram; a diversidade entre autores e autoras – e de temas e abordagens e jeitos de contar histórias – cresceu.
Quais foram os quadrinhos brasileiros que marcaram esta década? Seja pela discussão que gerou, pela tendência que definiu ou simplesmente por ainda ser lido no meio dessa quantidade e velocidade de opções, escolhemos dez obras que servem como divisores de águas nesta década. A lista foi composta por ordem de lançamento.
Não havia como prever o sucesso de nenhum dos quadrinhos abaixo, nem das águas que romperam, no início desta década. Só resta torcer que a ascendente do quadrinho brasileiro continue nos anos 20.
Daytripper (2010)
Panini/Divulgação
Você pode até contestar que Daytripper, como projeto, é uma publicação dos EUA. Mas a concepção e execução da HQ veio dos gêmeos paulistanos Fábio Moon e Gabriel Bá, que trilharam mais de uma década entre o quadrinho independente e colaborações com editoras dos EUA até chegar nesta obra máxima. Que, aliás, se passa no Brasil com personagens brasileiros. A minissérie em 10 capítulos foi publicada ao longo de 2010 lá fora, foi para o topo da lista de coletâneas do New York Times, ganhou Prêmio Eisner e Prêmio Harvey, mais o Utopiales na França, teve várias edições pelo mundo e foi adotada em universidades. É das poucas obras no mundo que se podem dizer perenes: continua sendo lida e vendida com regularidade. Prova disto é que ganha, em breve, uma versão Absolute nos EUA.
Achados e Perdidos (2011)
Miguilim/Divulgação
Em agosto de 2011, os quadrinistas mineiros Eduardo Damasceno e Luis Felipe Garrocho resolveram pedir ajuda dos fãs para fazer uma versão impressa da sua webcomic Achados e Perdidos – a história do garoto que acorda com um buraco negro na barriga. Recorreram a uma plataforma de financiamento coletivo lançada no início daquele ano: 520 fãs literalmente compraram a ideia e somaram R$ 30 mil para a publicação acontecer. Damasceno e Garrocho inauguraram o principal método de publicação independente do quadrinho brasileiro na década. Só o Catarse já registrou 1234 projetos de HQ até o fim de 2019 (quase 70% financiados). Ainda tem Kickante, Apoia.se e outras plataformas. De vez em quando há engarrafamentos de projetos – como as dezenas que se acumulam nos meses antes de cada CCXP – mas o mercado e os autores estão se ajustando.
Turma da Mônica Jovem #34 (2011)
MSP/Divulgação
Pouca gente levou Mauricio de Sousa a sério quando ele resolveu fazer versões teen da Turma da Mônica – e em versão mangá, em preto e branco. Em 2008, contrariando as expectativas, as primeiras edições esgotaram. Mauricio e equipe começaram a dosar o fan service e seguraram até a edição 34 o esperado beijo entre Mônica e Cebola. Resultado: 500 mil exemplares vendidos, número que não se via há tempos no mercado brasileiro. E nem no resto das Américas, onde Marvel e DC soltavam fogos se superavam 200 mil. A Turma da Mônica Jovem já teve casamentos, mortes, grandes sagas, relançamento, continua forte na linha MSP e virou animação.
Adormecida: Cem Anos para Sempre (2012)
8inverso/Divulgação
Pode parecer ridículo, porque é: até 2012, praticamente não havia graphics novels brasileiras assinadas por mulheres e publicadas por editora (a primeira provavelmente é Amana ao Deus Dará, de Edna Lopes, de 2004. É difícil encontrar outras.) E a primeira graphic novel de uma autora brasileira na década foi um projeto que estava engavetado desde os anos 1980 pela gaúcha Paula Mastroberti, inspirada nos álbuns europeus de fantasia e na fábula da Bela Adormecida. O número de autoras cresceu exponencialmente durante a década, seja em quadrinhos de editoras, no mercado independente ou nas webcomics. Num meio em que se considerava até o número de leitoras ínfimo – o que nunca foi verdade –, a paridade entre homens e mulheres na prancheta está perto de acontecer. E não tem discussão: diversidade importa.
Turma da Mônica: Laços (2013)
MSP/Divulgação
O projeto Graphic MSP foi anunciado em 2011 e já foi recebido como grande sacada: botar os autores que se destacam no quadrinho independente brasileiro a dar suas versões dos personagens de maior sucesso comercial do Brasil. Deu mais do que certo. Apesar de o primeiro álbum ter sido Astronauta: Magnetar, foi com Turma da Mônica: Laços, dos irmãos Vitor e Lu Cafaggi, que a proposta se concretizou: os leitores puderam ver a turminha num traço radicalmente diferente e com roteiro apurado. É a graphic novel brasileira mais vendida da história e rendeu mais duas continuações pelos autores. Sem falar, é claro, no filme de mesmo nome que teve bom desempenho nos cinemas em 2019, e que também terá continuação. As Graphic MSP ainda renderam outros sucessos de público e crítica, como Jeremias: Pele, de Rafael Calça e Jefferson Costa.
Tungstênio (2014)
Veneta/Divulgação
Marcello Quintanilha já era um nome que acumulava elogios no quadrinho brasileiro. Tungstênio foi uma mudança de rumo: se antes sua produção consistia sobretudo de histórias curtas e coloridas sobre o Rio de Janeiro, agora ele chegava com um álbum de quase 200 páginas, em preto e branco, sobre Salvador. O resultado atraiu atenção crítica no Brasil e, em seguida, fora: um prêmio no disputado Festival d’Angoulême em 2016 e outro no Rudolph Dirks Award no ano seguinte. Quintanilha hoje é publicado em toda a Europa e abre portas para outros autores brasileiros no continente – além de continuar com uma forte produção de graphic novels, como Talco de Vidro e Luzes de Niterói. Tungstênio, por sua vez, virou filme em 2018.
Castanha do Pará (2016)
Divulgação
Em 2017, depois de um abaixo-assinado via internet, o Prêmio Jabuti decidiu abrir a categoria de Histórias em Quadrinhos. Maior prêmio editorial brasileiro, o Jabuti tem quase 60 anos e até então não valorizava HQs como categoria própria no mercado. A entrada foi um reconhecimento da importância que o segmento ganhou nas livrarias. Apesar do prêmio ser do mercado livreiro e das editoras, o primeiro premiado na categoria foi justamente um quadrinho independente: Castanha do Pará, HQ com toques de surrealismo sobre um garoto nas ruas de Belém, de Gidalti Jr. A premiação a uma publicação de autor marcou a relevância dos independentes no quadrinho nacional.
Quadrinhos dos Anos 10 (2016)
Quadrinhos na Cia/Divulgação
André Dahmer começou seus famosos Malvados em 2001 e, aos poucos, acabou viralizando com suas pequenas pílulas de cinismo em quadrinhos. Ele e outras tiras combinaram bem com o compartilhamento de memes nas redes sociais. Hoje, é difícil abrir Facebook, Twitter ou mesmo WhatsApp sem ver uma tira de Dahmer, Ricardo Coimbra, Bruno Maron, João Montanaro, Jean Galvão e outros que construíram carreira nos últimos anos. Na situação sempre tensa da política brasileira e na polarização constante, seus memes – pois muita gente parou de chamar de tiras – são um respiro. E até despertou figuras de mais estrada, como Laerte, a voltarem à crítica política. Dahmer está em várias frentes – internet, jornais, livros – e uma das coletâneas que marcam seu trabalho nesta década é justamente Quadrinhos dos Anos 10.
Angola Janga (2017)
Veneta/Divulgação
Angola Janga não é só um, mas vários divisores de águas: a primeira graphic novel brasileira original com mais de 400 páginas; o primeiro autor a colecionar Eisner, Jabuti e HQ Mix no mesmo ano; o primeiro autor negro a tratar de um tema negro da perspectiva de ex-escravizados negros. Junto a Cumbe, de 2014, uma espécie de álbum de preparo – o que lhe valeu o Eisner –, D’Salete abriu espaço para um momento de extrema importância e fraquíssima exploração narrativa na História do Brasil, justamente quando as discussões sobre raça estão acirradas no mundo. Você pode esperar mais filmes, séries, videogames e quadrinhos sobre o período da escravidão a partir do sucesso de Angola Janga.
Alho-Poró (2018)
Divulgação
Não é exatamente um divisor de águas, mas uma aposta: Bianca Pinheiro pode ser uma grande referência para os quadrinhos brasileiros da próxima década. A autora carioca surgiu nesta década com uma webcomic infantil, Bear. De repente, virou 180 graus e começou narrativas de terror como Dora e Meu Pai é um Homem da Montanha. Vieram suas duas Graphic MSP da Mônica e, de novo, mais surpresa com o conto de vingança feminina em Alho-Poró – seu melhor desempenho narrativo até agora – e as discussões existencialistas de Eles Estão Por Aí e Sob o Solo (ambos com Greg Stella). O jeito como Pinheiro conduz a carreira, com produções de vários gêneros e alternância entre editoras – ou mesmo se autopublicando – segue o modelo de alguns autores norte-americanos e franceses, e pode ser um modelo para autores brasileiros nesse mercado movimentado. É bom prestar atenção nos caminhos da Bianca Pinheiro.