Considerada uma das personagens mais reconhecíveis da cultura pop e um símbolo feminista para muitas mulheres, Mulher-Maravilha completa 80 anos marcados por momentos memoráveis e controvérsias curiosas. A heroína que já foi deusa, semideusa, boneco de barro, já teve versões suas como bebê, menina e mulher simultaneamente nas mesmas histórias, já desapareceu, ficou louca, teve uma irmã negra, ficou cega, teve um irmão gêmeo, teve vários irmãos e irmãs, amou Steve Trevor, mas namorou a amazona Kasia e o Batman e o Superman (não ao mesmo tempo, ufa).
Ela realizou sua primeira aparição na edição de dezembro de 1941 da revista All Star Comics #8 (chegou às bancas em outubro de 1941), teve um desenvolvimento um pouco melhor na edição de janeiro de 1942 da revista Sensation Comics #1 e realizou seu debut em uma revista solo em junho de 1942. Ou seja, com 80 anos de publicações contínuas, seria impossível listar todas as suas aventuras mais incríveis, mas podemos lembrar de seus momentos mais icônicos, não é mesmo?
O início
DC Comics/Divulgação
Em 1941, quando William Moulton Marston foi convidado por Max Gaines a criar um novo super-herói para a editora de quadrinhos EC Comics, o que o editor tinha em mente era que esse novo personagem pudesse acalmar os ânimos de algumas alas da sociedade que já vinham se posicionando em relação à violência contida em algumas histórias em quadrinhos. Mal sabia ele que a própria vida de Marston era tão não convencional que vários elementos dela foram retratados nas HQ da Mulher-Maravilha.
Naquela época, as pessoas não tinham ideia disso. Marston era bígamo, casado com Elizabeth Holloway, uma brilhante advogada que foi responsável pela edição da enciclopédia Britânnica, e tinha um relacionamento com sua aluna do curso de psicologia, Olive Byrne. Ambas moravam na mesma casa com Charles Moulton Marston, viviam de maneira harmoniosa, criaram seus 4 filhos juntas e, de acordo com relatos de Christie Martson, neta de Elizabeth e William com quem converso às vezes, foi Elizabeth quem sugeriu que esse novo super-herói fosse uma mulher.
H.G. Peter and Lou Rogers
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Com uma ideia de como essa personagem deveria se parecer, Marston então convidou o desenhista H.G. Peter para desenhá-la, indicando que ela deveria ser “tão poderosa quanto o Superman, tão sexy como Miss Fury, tão sumariamente vestida como Sheena, a rainha da selva, e tão patriota quanto o Capitão América”. A escolha do desenhista não foi aleatória: Marston se identificava com a luta das sufragistas (1ª onda do movimento feminista) e H.G. Peter desenhava para a coluna sufragista The Modern Woman da revista Judge, juntamente com Lou Rogers, desenhista cujo trabalho o inspirou a desenhar a Mulher-Maravilha.
Sua primeira HQ
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Então, o primeiro momento memorável de nossa aniversariante é sua primeira HQ, que apresenta em sua primeira história de origem como a deusa Afrodite teria criado as Amazonas para trazer amor e equilíbrio a um mundo cujos homens, incentivados por Ares, estavam em guerra. Essa edição é icônica porque além de contextualizar a necessidade de uma heroína para apaziguar o coração dos homens, também inaugurava a coluna chamada as Mulheres-Maravilhas da história, dedicada a apresentar mulheres reais que tiveram destaque em diversas áreas. A coluna era editada por Alice Marble, ex-tenista profissional, que contribuiu com a revista por dois anos, sempre trazendo informações interessantes sobre mulheres incríveis. Foi também nessa edição que os leitores foram apresentados à Baronesa Paula von Gunther, inimiga recorrente de Diana.
O Mulher-Maravilha se casou com um monstro?
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Após a morte de William Marston em 1947 e diante de uma censura autoimposta pelo código dos quadrinhos (CCA – Comics Code Authority) a partir de 1954, além de um retrocesso nos avanços que as mulheres haviam conseguido até os anos 1950, muitas HQ de super aventuras foram descontinuadas, porém, a da Mulher-Maravilha não foi uma delas. Ainda assim, ela teve que se adequar aos critérios da época e acabou se tornando uma personagem de romance adolescente aos moldes das revistas como Archie e Millie, the Model, ou seja, de heroína superpoderosa, se tornou uma mulher ciumenta que pensava em casamento o tempo todo.
As histórias até o início dos anos 1970 refletiam essa tendência romântica com tramas infantojuvenis, por isso, na revista de número 155 de 1965, temos um bait na capa onde se lê – “A Amazona surpreende o mundo: Eu me casei com um monstro!”. Mas será?
Na verdade, o que ocorreu é que a pobre Diana ficou muito confusa com as investidas de Steve Trevor, de Manno (literalmente um homem-sereia) e do Homem-Pássaro, todos acreditando que ela deveria se casar com um deles. Em sua fuga para Themicyra (na época, Ilha Paraíso), ela se depara com um castelo flutuante com um monstro-príncipe que, ao realizar boas ações, se tornava bonito (A bela e a Fera feelings né?). Por isso, Diana decide se casar com ele para lhe mostrar que a beleza vai além das aparências, mas o moço a deixa no altar na última hora porque precisa ficar sozinho... É, se até a Mulher-Maravilha já foi deixada no altar, o que será de nós, pobres mortais?
Diana larga tudo e vira dona de boutique
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Está achando muito estranho que até agora esses momentos icônicos não reflitam toda a majestade da nossa amazona? Calma! Antes de melhorar, piora bastante, aí fica bom e depois acontece que fica ruim de novo.
Pois é, o que poderia ser pior do que Diana renunciar a seus poderes? Ela depender de um homem para ensiná-la a lutar. Sim, na edição nº 179 de 1968, ela decide se manter no mundo dos homens depois que as amazonas se mudam para uma outra dimensão a fim de restaurarem seus poderes e vira uma espiã lutadora de artes marciais que se disfarça como uma dona de loja de roupas. Ainda que a intenção de homenagear os thrillers de espionagem tenha sido boa, o resultado não foi muito bem recebido pelo público feminino leitor das suas HQ.
Mulher-Maravilha para presidente!
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Uma semideusa ter sido resumida a uma dona de loja e lutadora de kung-fu não só não agradou muitas leitoras, como não agradou uma ala bem específica do público feminino: as feministas da 2ª onda, lideradas por mulheres como Gloria Steinen, que não só reivindicou que a Mulher-Maravilha recuperasse seus poderes, como a colocou na capa da primeira revista feminista dos EUA, a Ms. Magazine, com o título: Mulher-Maravilha para presidente. Foi nesse momento que ficou claro para os editores da DC que a relação da personagem com os movimentos feministas não tinha encerrado na ocasião da morte de Marston e nem mesmo com décadas de histórias relativamente fracas se comparadas às aventuras de seus colegas da famosa trindade: Superman e Batman.
Enfim, o arco do George Perez
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Aclamado pelos fãs e pela crítica, o arco de George Perez é famoso por finalmente ter propiciado à nossa princesa amazona uma narrativa épica, com todo o panteão de deuses gregos e respeitando suas origens e mitologia.
Após ter sido muito bem-sucedido com Crise nas infinitas terras, série responsável por vários eventos que permitiria realinhar e recomeçar a cronologia dos super-heróis da DC, Perez aceitou o desafio que outros artistas recusavam: criar uma nova história para a Mulher-Maravilha. Trina Robbins, primeira mulher a desenhar a personagem (em 1986, mais de 40 anos após a criação da Mulher-Maravilha), me contou que foi também George Perez que insistiu na DC que mulheres deveriam ter a chance de trabalhar nas HQs da amazona e a indicou para ilustrar outra série do mesmo título.
Esse arco do Perez, que durou de 1985 a 1991, tem uma das mais sensíveis histórias de origem das amazonas, indicando que a misoginia que tanto denunciamos hoje em dia, acometia as mulheres desde os tempos mais remotos. Essa perspectiva se assemelha bastante a uma das versões do mito das amazonas contado por Christine de Pizan em 1405, quando a autora escreveu A Cidade das Damas, e justifica a necessidade das amazonas terem que se afastar do mundo dos homens.
Nessa mesma série, Diana foi embaixadora da paz pela ONU, viveu diversas aventuras, ajudou muita gente e se manteve sempre muito fiel aos seus ideais e à toda mitologia iniciada por Marston nos anos 1940. É sem dúvida alguma um dos momentos mais icônicos vividos pela Mulher-Maravilha e um ótimo ponto de partida para quem deseja começar a ler suas HQs.
O Brasil da Mulher-Maravilha
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Como pouca coisa se salva nos anos 1990 e 2000, é muito mais válido seguirmos em direção à atualidade lembrando momentos significativos de Diana, mas antes disso, vale destacar três histórias que merecem ser lidas: “Hiketea” (aquela que ela pisa na cabeça do Batman, mas também recorre a rituais da sua tradição grega para salvar uma mulher que pede sua ajuda), “Novos 52” (porque além de recuperar a relação mitológica de Diana com o panteão dos deuses gregos, é muito divertida em vários momentos) e “A verdadeira Amazona”, de Jill Thompson (embora seja uma história fechada e não faça parte do cânone, é visualmente muito bonita e traz uma visão bem inusitada sobre a personagem). A série de TV estrelada por Lynda Carter no final dos anos 1970 e o primeiro filme com a Gal Gadot em 2017 merecem homenagens à parte, mas certamente estão entre os pontos mais altos da vida da aniversariante do mês.
Agora, sobre o Brasil, embora conterrâneos como Mike Deodato, Adriana Melo, Renato Guedes já tenham trabalhado com a Mulher-Maravilha em algum momento, é muito importante destacar o trabalho incrível que Bilquis Evely tem realizado na série “Renascimento” em sua representação da princesa amazona e dos demais personagens relacionados a ela. A riqueza de detalhes do seu traço e a fluidez que ela confere às cenas de ação são de deixar qualquer pessoa boquiaberta, além de nos deixar muito, muito bem na fita, não é mesmo?
Yara Flor
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Porém, o Brasil tem sido representado na pele de uma amazona indígena chamada Yara Flor (“DC Future State”), a atual Moça-Maravilha, cuja relação com os elementos místicos e religiosos das culturas dos povos indígenas da floresta tropical fornece a ela meios de transitar entre mundos e dimensões mitológicas a fim de resgatar suas irmãs. Apesar de as primeiras histórias terem gerado algumas controvérsias relacionadas à falta de cuidado com o tratamento de símbolos dos povos nativos, ao que tudo indica, a equipe criativa liderada por Joelle Jones parece estar disposta a ficar mais atenta a isso e conta com Adriana Melo para ajudar nesse aspecto.
Esses são apenas alguns momentos icônicos pincelados por mim ao longo desses 80 anos que passaram voando. Quais seriam os momentos mais significativos na vida da Mulher-Maraviha para você? O que será que os próximos 80 aos reservam para ela?
*Dani Marino é pesquisadora de histórias em quadrinhos e questões de gênero, mestre em comunicação e doutoranda em ciência da informação.