Florence Welch, do Florence + The Machine, em foto para o Dance Fever (Divulgação)

Música

Crítica

No Dance Fever, Florence transforma crise de identidade em música sublime

No 5º álbum, britânica reacende o prazer de ouvir um artista em eterna busca por si mesmo

16.05.2022, às 16H28.

Às vezes, você ouve um verso e pensa: “Só essa pessoa poderia ter escrito isso”. Acontece, inclusive, com todas as melhores popstars - e parece que, no quinto álbum de estúdio, Florence Welch finalmente encontrou a sua estrofe assinatura. Ele aparece em “King”, primeira canção do Dance Fever: “Eu preciso da minha coroa dourada de pesar/ Da minha espada sangrenta para brandir/ Que os meus corredores vazios ecoem/ A minha grandiosa automitologia”.

Essas quatro linhas representam bem o que fez a inglesa, líder do Florence + The Machine, capturar a fascinação do público desde o finalzinho dos anos 2000, principalmente a forma como ela expressa aspirações comuns em uma escala quase mitológica. Afinal, não é só a potência absurda dos vocais de Welch que dita que eles sempre sejam passados por um filtro de ecos que faça parecer que o disco foi gravado dentro de uma catedral, ao invés de um estúdio. Essa é uma escolha narrativa, também. Para ela, cada álbum é uma celebração sacra das imperfeições humanas.

É curioso falar isso justamente à ocasião do lançamento do Dance Fever, no entanto, porque o disco é também o mais “pé no chão”, mais orgânico do Florence + The Machine desde Lungs, que saiu em 2009 e catapultou a banda ao estrelato com épicos rockeiros como “Kiss With a Fist” e “Dog Days Are Over”. E não sou só eu que estou dizendo, inclusive. A própria Welch contou ao The New York Times que enxerga o disco como uma resposta às últimas coisas que tem feito”: “Eu estava de saco cheio das minhas m*rdas de sempre. Do meu piano pesado. Eu estava com saudades de guitarras”.

As guitarras e violões estão, de fato, por todo lado no Dance Fever. Eles dão graciosidade à progressão frenética de “Free”, que também é levada por uma linha de baixo sintetizada que lembra um pouco o pique de “Dog Days”; e aparecem em tom singelo, ameaçando um passeio pelo country, nas excelentes “Girls Against God” e “The Bomb”, que resgatam algo da Florence Welch poetisa do minimalismo, à plena vista no Lungs, mas sufocada em favor da grandiosidade dos discos subsequentes.

Seria injusto definir o álbum como um “retorno à forma”, no entanto, por alguns motivos: primeiro, o Florence + The Machine nunca esteve fora de forma; segundo, o Florence + The Machine nunca está confortável em apenas fazer o esperado. O Dance Fever não é um repeteco do Lungs, mas uma obra temperamental e única, moldada pela colaboração de Welch com dois produtores e escritores com quem nunca havia trabalhado antes: Jack Antonoff, força importante em discografias pop recentes como as de Lana Del Rey, Lorde e Taylor Swift; e Dave Bayley, líder da banda Glass Animals.

Os dois são artistas de instintos opostos, e isso é audível no Dance Fever. As canções de Welch com Antonoff, todas posicionadas no começo do disco, herdam a abordagem quase minimalista do produtor. Nelas, a cantora desfila suas dúvidas existenciais por cima de baterias, guitarras e sintetizadores graves, nunca intrusivos na melodia. É um exercício curioso de coibição, ouvir uma artista sempre tão dramática se multiplicando em duas ou três vozes ao invés de se jogando em corais apoteóticos e batuques tribais.

A conclusão, claro, é que Welch é tão boa quando te permite ouvir cada detalhe da música quanto é quando sobrecarrega as emoções do ouvinte com paredes de som e fúria. É apropriada a diferenciação de intensidade, também, porque essa primeira fase do Dance Fever traz a artista em uma crise de identidade enervante, expressada principalmente na forma como fala de seu ofício como cantora e sua condição como mulher. “Você diz que o rock n’ roll morreu/ Mas será que isso é só porque ele não ressuscitou/ À sua imagem e semelhança?”, provoca ela em “Choreomania”.

Há uma contradição intensa entre o quanto Welch precisa da e anseia pela catarse artística e o ressentimento que ela expressa quando percebe essa necessidade, esse desejo. E é justamente quando essa tensão está atingindo o insuportável que Antonoff sai de cena para dar lugar a Bayley, e o Dance Fever se transfigura de uma meditação taciturna para uma celebração raivosa, barulhenta, um grito segurado por tempo demais.

Mais explícita sobre a influência dos anos de isolamento da pandemia em sua visão de arte e mundo, ela canta frustrações coletivas em canções como “My Love”. Trazendo de volta a sonoridade Motown (gravadora que moldou o soul americano dos anos 60 e 70), que também brilhava no Lungs, Welch declama por cima de teclados e sintetizadores que ficou sem saber onde colocar o seu amor” diante de um apocalipse quieto e lento” - e ainda finaliza com um sussurrado todos os meus amigos estão ficando doentes”. Angustiante, sim, mas também catártico como só ela poderia fazer.

Nessa parte do álbum, em épicos como “Cassandra” e “Daffodil”, reaparece a Florence declamatória, das canções que soam como evocações pagãs e mantras de feitiçaria. Ela volta a fazer, de certa forma, aquela mesma “automitologia” contra a qual veio lutando no restante do álbum. Curiosamente, isso não faz o Dance Fever soar hipócrita ou confuso sobre si mesmo, mas o faz soar mais honesto.

No fim das contas, o álbum nos lembra que um dos prazeres da arte é assistir a um artista em constante busca por si mesmo. Como o próprio título do disco indica, não há porque lutar contra o ritmo, contra a explosão, contra a nossa necessidade de expressão. Precisamos todos existir na face do sofrimento e da morte/ e mesmo assim continuar cantando” (verso de “Free”). Essa última parte é um pouco mais fácil com o Florence + The Machine no mundo.

Nota do Crítico
Ótimo