Katy Perry em foto promocional de 143 (Reprodução)

Música

Crítica

Na ânsia de reviver o passado, 143 ignora o que move a Katy Perry de hoje

Disco é fruto de artista insegura, entregue a uma produção - no máximo - irregular

20.09.2024, às 16H53.

Ouvir “Wonder”, faixa de encerramento do novo álbum de Katy Perry, é um exercício de prazer e frustração. Prazer de se lembrar que a artista californiana sabe escrever melodias pop como poucas de sua geração, prazer de confirmar que o papel de uma boa produção é realçar as virtudes de um artista e entender como encaixar essas virtudes em uma experiência sonora destinada ao outro (ponto para o duo StarGate, aqui aliados ao produtor canadense Cirkut), prazer de ouvir uma vocalista esticando os seus músculos mais expressivos para transmitir uma mensagem na qual acredita… e frustração, é claro, por perceber que nenhuma dessas coisas está em qualquer outra das dez faixas anteriores do 143, o disco em questão.

O que essas dez canções anteriores tem de sobra, no entanto, é vontade de agradar. Na ânsia de se desvencilhar do fracasso do seu último álbum (o vastamente superior Smile, de 2020), Perry se alia aqui ao produtor Dr. Luke - que, para além de qualquer consideração ética válida em torno da acusação de abuso levantada por Kesha, é um nome emblemático do pop anglófono dos anos 2010 e arquiteto de boa parte dos hits da própria Perry. A ideia expressa, portanto, é retomar a glória passada, e não faltam paralelos para se desenhar: “Gimme Gimme” leva Perry ao território do trap na tentativa de emular “Dark Horse”, com 21 Savage no lugar de Juicy J; a batida sintetizada propulsiva da balada “All the Love” lembra “The One That Got Away”, símbolo dos hits românticos/tristes da cantora; e as distorções de “Artificial”, que abusa da metáfora tecnologia-sedução, não fogem da fórmula “E.T.”, mais uma vez substituindo um rapper por outro (JID entrega um ótimo verso ao fazer as vezes de Kanye West).

Mas a trucagem nostálgica não é nem o problema - muito do fazer pop, afinal, está justamente no truque, na referência (depois de certo tempo de carreira, na autorreferência), na retroalimentação e na reciclagem de ideias. Só há de se cuidar que a perpetuação desse ciclo aconteça com algum propósito, que o assalto ao guarda-roupa pregresso da própria carreira sirva mesmo ao presente, tanto o do cenário pop como um todo quanto o da expressão artística da titular da obra. Em 143, a escavação de Perry por Perry parece um experimento comercial vazio, traído pela fragilidade das próprias canções que o formam - todas num esquema de verso-refrão-verso-refrão que, nos menos de 3 minutos ditados pela era do streaming, não levam a lugar nenhum além da referência que fazem.

Há no meio dessa ostensiva viagem de nostalgia, ainda, uma tentativa meio desanimada de aproximar o 143 da dance music, seja ao entrelaçar algumas (não todas, isso daria muito trabalho!) faixas para se parecerem com um DJ-set ou assumindo o sintetizador grave do summer eletrohits em faixas semi-inspiradas como “Crush” e “Nirvana”. Ambas encontram alguma inspiração lírica, também, ao assumir uma versão abertamente paródica da bobagem generalista que foi o forte de Perry na fase inicial da carreira (“Sim, eu tenho palpitações/ Tenho estes boom-boom-booms/ Estou numa nova vibração/ Preciso de medicação”). É uma entrega ao bom humor que não só serve bem a ela como letrista, como também alivia um pouco a pressão em cima do 143, que por alguns segundos parece parar de se desdobrar para recuperar um público perdido já muito além do seu alcance.

Há de se simpatizar, de certa forma, com o dilema de Perry no cenário contemporâneo. Como artista dance, ela não tem a paixão pelo gênero e a despreocupação comercial que guiam uma Robyn, uma Roisín Murphy, até uma Kylie Minogue - essas fazem música da forma como querem, para um público que as quer assim. Como diva pop de apelo amplo, por outro lado, ela representa uma música que foi retorcida e transformada pelas artistas que vieram depois dela, mas que ainda não está removida o bastante do atual para encontrar o seu nicho como um simples resgate. É uma sinuca de bico, sem dúvida, mas também é uma sinuca de bico inteiramente baseada em considerações comerciais, ao invés de artísticas.

Como artista (artista, ponto, sem qualificador), Perry só precisa fazer o que faz sentido para ela. E, se o contraste chocante entre o insosso 143 e a carismática “Wonder” servir para alguma coisa, que seja para provar que, quando segue a trilha do que ainda a move, ela consegue também mover o público.

Nota do Crítico
Ruim