A fase de lançamentos solo que o hiato forçado do BTS criou para a trajetória dos integrantes do grupo tem sido em partes iguais uma confirmação e uma revelação das forças e interesses de cada um deles como artistas. RM está por aí procurando um novo conceito de hip hop melódico que atenda às suas obsessões líricas, J-Hope foi além da sua persona luminosa com um álbum de rap experimental, Suga seguiu uma trajetória já estabelecida como o desafiador pseudônimo Agust D, V se enveredou pelo R&B personalíssimo de timbre grave que já era esperado dele, JungKook se alçou ao estrelato global para o qual ele sempre pareceu destinado, e Jimin... bom, ele está fazendo música pop. Boa música pop.
No ano passado, o cantor sul-coreano esticou seu inconfundível timbre esganiçado por cima de sintetizadores aéreos no bom disco de estreia Face, que o revelou como veículo bem desenhado para as ambições imediatas de pista de dança do k-pop. Mas o novo Muse é um animal diferente, uma olhadinha de lado travessa para uma miríade de gêneros musicais que passaram batidos por seu antecessor, e um tipo de disco que seria fácil de chamar de “mudança de marcha” ou “reversão de curso”, se não fosse pelo fato que… quer saber? Artistas pop fazem isso o tempo todo, a gente só se esqueceu disso diante da exigência de “autenticidade” da música ocidental.
Muse tem um lado sentimental impossível de ignorar, estabelecendo desde a abertura em “Rebirth” o seu status como declaração de amor em tons leves, etéreos, que combinam com os vocais de vocação celestial de Jimin. Quando filtrados pelo autotune (empregado sem economia, mas muita expressividade, por todo o disco) e multiplicados em corais de repetição própria, os vocais do sul-coreano aproximam o disco do dream pop e da música sacra, mas Muse não segue o caminho da homogenidade, e logo se revela um passeio curioso por outra influência fundadora do pop contemporâneo: o jazz.
O single “Smeraldo Garden Marching Band” é todo guitarra e baixo picotados, estruturas melódicas de chamado-e-reposta (atenção para como os backing vocals filtrados se inserem em quase todo intervalo entre versos) e toques de teclados adocicados. Enquanto o integrante do BTS declara sem rodeios o seu amor por esse interlocutor que, ele parece repetir em toda faixa, não sai da sua cabeça, a canção deságua no refrão circular irresistível da sucessora “Slow Dance”, parceria com Sofia Carson que revela uma sincronia esperta de meio e mensagem - se Carson, em seu soprano suspirante, nos admoesta a “nos render ao tempo da nossa música favorita”, a batida calibrada da faixa garante que o desejo da cantora seja atendido.
E, se há algo inesperado no solo de clarinete que pontua o final de “Slow Dance”, você definitivamente não está preparado para a guitarra espanhola que dá o pontapé inicial em “Be Mine”. Coescrita por Ryan Tedder (líder do OneRepublic e compositor de clássicos pop como “Halo” e “Bleeding Love”), a canção tem a assinatura dele em seu refrão de melodia ondulante, mas a aproximação do flamenco e do tango é toda dos produtores Pdogg e GHSTLOOP, talvez os nomes chave para entender o Muse. Com só um pouco do espírito anárquico do k-pop, que dá goleada em sua contraparte ocidental quando se trata da coragem de misturar referências para criar a confecção pop perfeita, o disco voa alto.
Fazer música pop, afinal, é um exercício de liberação e coibição - e talvez tenhamos nos esquecido um pouco do apelo desse exercício na nossa busca por uma expressão artística mais “autêntica”. A boa música pop é fundada, necessariamente, na tensão entre transgressividade de gênero (falo principalmente do gênero musical, embora não seja por acaso que o pop é palco de tantas narrativas queer) e conformação a um ideal “vendável”. Controle e descontrole, referência e novidade, antigo e novo, arte e comércio, individualidade e universalidade.
Em Muse, até o single excessivamente curto que é "Who" - exigência da era do streaming, entendemos! - tem algo dessa mistura difícil e empolgante em seu violão frenético e sua melodia febril. Enquanto seus colegas de grupo estão por aí explorando gêneros e ideias mais rígidas por definição, enfim, Jimin dá sinais de ser capaz de abraçar as contradições e criar arte interessante nos cabos de guerra do pop. É um talento cada vez mais raro, o que só realça o prazer de encontrá-lo por aqui.