O ano de 2022 é único na trajetória do Red Hot Chili Peppers. Com Return of the Dream Canteen, lançado na última sexta (14), a banda californiana chegou a dois álbuns inéditos em um mesmo ano. Para quem lançou exatamente dois em toda a década de 2010, é algo que chega a impressionar. Agora, será que essa redescoberta da criatividade se traduz em músicas inéditas que fazem juz à fama e tradição da banda? Resposta curta: sim. Só que há um detalhe.
Pode-se dizer que Return of the Dream Canteen é um irmão gêmeo de Unlimited Love, disco anterior, lançado em 1º de abril. Ambos foram gravados nas mesmas sessões de estúdio em 2021, canalizando uma dupla energia represada. Anthony Kiedis (vocais), Flea (baixo) e Chad Smith (bateria) vinham daquele período sombrio dos momentos mais agudos da pandemia, da dor e do isolamento. Os três se reencontraram com o guitarrista John Frusciante, de volta ao RHCP depois de 13 anos, que também trouxe a sua criatividade após uma carreira solo na qual migrou até para um som mais eletrônico.
Agora, se em Unlimited Love os Chili Peppers e o produtor Rick Rubin escolheram uma setlist com sons que apontavam para frente, ainda que com pé firme nas bases da banda, este segundo álbum de 2022 bebe um pouco mais do passado em sua sonoridade - mesmo que as letras sigam como crônicas da pós-modernidade pela visão dos agora sessentões. Reflexo, de certa forma, desse misto de nostalgia, tristeza e melancolia que o isolamento trouxe. No caso do RHCP, isso se refletiu no resgate de referências que vão desde o funk americano da década de 1980 (algo sempre forte para o grupo), com outros elementos de outrora. “[O álbum é] Algo sobre nós quatro vagando em um tempo e lugar no que haver menos definição do que o normal levou a mais música”, comentaram em comunicado à imprensa na última semana.
É essa a ideia da tal “cantina dos sonhos” do título, um lugar servindo essa bebida para afogar as mágoas e curtir essa criatividade estranha. “Nós apenas continuamos bebendo. A cantina era generosa”, definiram. Um exemplo disso é justamente “Tippa My Tongue”, música de abertura de Return of the Dream Canteen. Um baixo clássico (e marcante) de Flea, acordes de guitarras características de Frusciante e uma batida funk ao ritmo de George Clinton, o grande guru do RHCP lá em seus primórdios. A canção funciona como uma porta de entrada para o resto do álbum, com uma letra que lida com a energia sexual dos Chili Peppers, bem como toda a sua história envolvendo entorpecentes - às vezes, com duplo sentido. “Vou te pegar com a ponta da minha língua”, diz o refrão.
O novo som com gostinho do passado continua com “Peace and Love”, que se alguém colocasse como uma música bônus de “Mother’s Milk” (de 1989) pouca gente perceberia que são de épocas distintas - a parte, apenas, da letra mais calma. E por falar em letras, é possível perceber a consolidação de um senso de desilusão a cada faixa - algo que não é exatamente novo na trajetória do RHCP (é só lembrar de “Under the Bridge”), mas que nunca soou tão intenso antes, quando olhamos para o conjunto do álbum.
Essa introspecção, por exemplo, é a base de “Eddie”. O que nos primeiros segundos parece uma reinterpretação de “By The Way” (canção do álbum homônimo, de 2002), pouco depois se revela como uma bela homenagem a Eddie Van Halen, que morreu em 2020 e era grande amigo dos músicos, principalmente de Flea. De forma comovente, ainda que para cima, a canção relembra de quando eles se encontravam pela Sunset Strip. “Por favor, não se lembre de mim. Ainda é 1980, ainda é 1983”, diz o refrão, antes de fechar com uma guitarra de Frusciante que parece chorar com seus acordes.
A primeira grande mudança de tom de Return of the Dream Canteen vem com “Fake as Fu@k”. A escolha do uso de "@", que poderia chamar atenção em uma banda que nunca teve medo de palavrões no passado, vem aqui com um propósito: há uma referência à internet, este lar de fakes - antes, de pessoas de mentira; hoje, de mentiras das pessoas. “Leve-me para o seu líder onde a maquiagem é fake pra caralho”, canta Kiedis. Será que ele está se referindo a alguém com um tom de pele laranja que parece uma maquiagem pra lá de falsa? Independente da polêmica, essa colagem de cenários e situações (uma característica bem RHCP) é seguida por um ritmo cadenciado de baixo e guitarra, que vai ganhando velocidade e contornos.
O ritmo sobe para “Bella”, que apresenta aquela já esperada viagem pela Califórnia que o Red Hot Chili Peppers sempre traz. Dessa vez, a perspectiva é dessa jovem que quer morar em Los Angeles e pela qual o eu-lírico se apaixona. Porém, nem ela está afastada desse tom (conformado) de depressão e tristeza que permeia Return of the Dream Canteen: “Bella chora e está tudo bem, ela está chorando em meu ombro novamente. Bella mente e esse é o meu tipo”.
Esse olhar sem rumo aprofunda-se ainda mais duas músicas depois, em “My Cigarette”. A repetição do “meu” antes de “cigarro” soa como um pedido desesperado (e triste) por um escapismo, por uma forma de transformar os problemas em fumaça. Após um momento deprê, o tom volta a subir em “Afterlife”, com o álbum entrando em seu terceiro momento. Das referências do passado, o som traz um misto de guitarra do funk e do soul dos anos 1970 com um quê de bossa nova nos vocais.
O resultado é interessante, um pouco dançante, e uma letra que é uma grande homenagem aos mestres que hoje estão no além-vida, como Elvis e James Brown - e Iggy Pop, que, bom, está bem vivo. “O além-vida sabe onde eu estarei”, diz a letra. Talvez seja sobre isso, mesmo: sobre como vive-se para sempre nas canções que ficam após a morte.
Duas músicas depois chegamos em “Handful”, outra joia de Return of the Dream Canteen que, de alguma forma, conversa com “Afterlife”: se a anterior fala da imortalidade por meio do som, esta conversa a aceitação ao envelhecimente, uma conclusão parcialmente chocante para quem sempre quis demonstrar a sua jovialidade explosiva. “Tem um capítulo do meu livro que eu não quero ler. Tem um capítulo da minha vida que falhei em ter sucesso”, diz a letra extremamente sincera. Tudo isso vem acompanhado de um som que flerta bastante com o rock progressivo ou até do rock nacional dos anos 1980, com momentos que poderiam muito bem vir do RPM em sua melhor fase.
O ritmo vai seguindo esse lado contemplativo, com “La La La La La La La La” puxando exatamente esse refrão enquanto diz coisas como “eu quero passar a vida toda com você”; e com “Copperbelly”, mas a coisa volta a acelerar com “The Drummer”, uma bela homenagem à trajetória no meio da música independente e - ainda que sem nomes - a essa função tão importante, a do baterista, que tem justamente em Chad Smith como um de seus melhores (ainda que pouco reverenciado por isso).
Na penúltima faixa, “Carry Me Home”, o RHCP bebe direto do blues e de Jimi Hendrix com um Frusciante bastante inspirado. Agora, não se engane: a tristeza ainda está lá. “Leve-me para casa, carregue o meu peso em seus ombros”, canta um Anthony Kiedis clamando por ajuda. Fechando tudo, “In The Snow” traz um clima meio A-ha, meio Genesis, em que os versos, no entanto, não poderiam ser mais atuais: “eu verifico meu estúpido telefone novamente, não importa que são 4 da manhã. Um holofote nascido para brilhar à noite”.
Assim termina aquele que deve ser o mais triste e contemplativo álbum dos Chili Peppers, com Kiedis, Flea, Frusciante e Smith refletindo sobre a vida (do passado ou pós-moderna) e até sobre o além-vida. Para um grupo tão energético, não poderíamos esperar outra coisa após um período tão agridoce, agora temperado com o sal do mar de Venice Beach.
Curiosamente, soa tudo muito solto e autoconsciente, como uma tela em branco para pintar da forma que achar melhor, sem se pensar em mercado, vendas ou monetização e plays no Spotify. O RHCP poderia ter pego o melhor dos dois álbuns de 2022 e montar um só com as porradas mais comerciais? Poderia. Em vez disso, o grupo ouviu o coração e fez o que deu vontade. E a boa música sempre vem do coração.
“Nós estamos apenas começando. Os Monges do Funk estão na estrada”, canta Kiedis ainda em “Tippa My Tongue”. Que assim seja: que o quarteto californiano siga nessa trajetória, encontre dias melhores e, como todos nós, definitivamente saia desse março de 2020 que ainda não acabou.