Bridgerton nunca se propôs a ser uma adaptação de Jane Austen. Com isso, quero dizer que a ideia da série, desde o princípio, não era ser mais um romance de época tradicional, embora o material original em que se baseia seja essencialmente um dos maiores exemplos desse tipo de conteúdo nas últimas décadas. E sim, décadas, porque os romances de Julia Quinn que inspiraram a série da Netflix foram escritos e publicados entre o final dos anos 1990 e 2006, quando A Caminho do Altar, o oitavo livro da coleção, chegou ao público.
Era de se imaginar, portanto, que as histórias contidas neles não seriam muito revolucionárias - e tudo bem, já que romances diversos ou fora do padrão heteronormativo não eram tão amplamente discutidos e popularizados no período. Porém, ao escolher adaptar a série literária para um programa de TV duas décadas depois, é esperado também que mudanças sejam feitas. Afinal, ninguém realmente precisa assistir oito temporadas de casais heterossexuais, brancos e ricos vivendo variações de um mesmo padrão de romances, não é?
Por isso, foi bastante natural acolher as mudanças feitas pela equipe da série na adaptação de O Duque e Eu, livro que conta a história de Daphne e Simon, já na primeira temporada. A obra da Netflix, encabeçada por uma Shonda Rhimes que sempre se propõe a trazer diversidade em suas produções, decidiu incluir pluralidade étnica entre os seus personagens - trazendo, por exemplo, Regé-Jean Page, um homem preto, como seu primeiro protagonista masculino. A escolha gerou debates entre os fãs dos livros, mas foi majoritariamente bem aceita pelo público.
Kate e Anthony em Bridgerton (Reprodução)
Na segunda temporada, Kate Sheffield virou Kate Sharma, e o interesse amoroso de Anthony passou a ser uma mulher indiana. Essa mudança causou mais discussões entre os leitores de Julia Quinn, principalmente por dois motivos: o primeiro, e mais óbvio, é o preciosismo com o livro que é o mais querido entre os oito romances - os fãs de Kathony queriam uma adaptação fiel ao que está escrito, uma vez que já amavam a história como ela era; o segundo é que a mudança aqui vai além da temporada anterior, já que o background de Kate muda bastante com a escolha feita na série.
Porém, se a segunda temporada provou algo, é que nada disso importa de verdade. Não tem problema mudar vários detalhes, sejam eles grandes ou pequenos. Tudo o que importa (assim como na adaptação de qualquer material) é manter a essência desses personagens e da trama - e, finalmente, contar uma boa história. Tudo se resume a isso, afinal: não importa se um personagem que era branco agora é indiano, se for um bom personagem. Não importa se um personagem antes hétero agora é bissexual (ou pan, ou qualquer outra forma de identidade), ou uma personagem que tinha um romance hétero agora tem um romance sáfico, se for um bom romance. Ou, pelo menos, não deveria importar.
A verdade é que é difícil largar o osso, principalmente quanto a coisas que as pessoas amam muito, como é o caso dos fãs que brigam por “fidelidade” nas adaptações. É claro que todo mundo sabe o sabor amargo de ver uma obra amada ganhar uma adaptação ruim - meu ponto é só que fidelidade nem sempre é sinônimo de qualidade. Um exemplo recente é a série de Percy Jackson e os Olimpianos, que se manteve muito fiel ao material dos livros e inclusive contou com Rick Riordan nos roteiros, mas que talvez tenha se atrapalhado nesse preciosismo, se perdendo na hora de contar a melhor versão dessa história em outra mídia (e nada disso tem a ver com as mudanças feitas na etnia de personagens antes brancos, vale ressaltar).
Assim, a comoção causada pelo final da terceira temporada de Bridgerton não é uma surpresa, visto o histórico de alguns fãs com suas obras queridas, mas tal preciosismo é ainda mais prejudicial para as adaptações quando associado a preconceitos velados. Isso acontece o tempo todo quando atores de outras etnias são escalados para dar vida a personagens anteriormente brancos, por exemplo. No caso das cenas de Bridgerton em questão, as atenções se voltam para a sexualidade.
O caso de Benedict, que começa a se relacionar com um homem e uma mulher, não devia ser recebido com nada além de um “eu já sabia”. A sequência é apenas uma confirmação de algo que a série insinuava desde a primeira temporada, e todo espectador minimamente atento já tinha notado que o segundo filho de Violet poderia ter um envolvimento com outro homem sem grandes alardes a qualquer momento - afinal, o personagem sempre se mostrou bastante progressista e livre de amarras sociais no que diz respeito a sua sexualidade. Porém, foi ótimo ver a série tendo coragem de sair do implícito e finalmente mostrar tal relação às claras.
Benedict em Bridgerton (Reprodução)
Já Francesca talvez tenha sido a gota d’água para os fãs preciosistas. Quando John Stirling apresentou a sua prima, Michaela, ao invés de um primo Michael, eu tive a certeza de que o fandom entraria em colapso. Tudo isso, é claro, porque Michael - e agora, Michaela - é o interesse amoroso de Frannie na história dos livros na qual ela é a protagonista. Foi uma surpresa num primeiro momento, já que nem era certo que a série introduziria esse personagem tão cedo, mas uma surpresa positiva: isso quer dizer que Bridgerton está planejando um futuro que continua a ser inovador e interessante, e poderemos acompanhar histórias diferentes, de pessoas diversas.
Michael ser Michaela não invalida a história de O Conde Enfeitiçado, até porque o livro é sobre várias questões internas de Francesca e como ela se abre para uma nova relação, os conflitos que vêm com isso. Nenhum desses pontos precisa sumir porque o interesse amoroso é uma mulher - na verdade, eles parecem ainda mais promissores. A mudança em si só não quer dizer nada em relação à qualidade da temporada que vem aí. É uma escolha, e o que determina se foi acertada ou não é como ela será desenvolvida.
O que podemos afirmar é que Bridgerton deixou claro desde o início que não estava no jogo para jogar seguro. A série se arrisca o tempo todo, às vezes acertando e às vezes errando, e talvez tenha feito seu movimento mais rebelde agora. No fim, mal vejo a hora de assistir as próximas temporadas, e isso é graças ao fôlego que personagens como Eloise, Benedict e Francesca receberam neste final - incluindo, e talvez principalmente, nas suas possibilidades homoafetivas.