Brincando com Fogo, novo reality de relacionamentos da Netflix, talvez seja uma das propostas conceituais mais ecléticas do mercado. Sua fórmula reúne elementos de títulos como Temptation Island, Big Brother, De Férias com o Ex e até do recente Casamento às Cegas, já que, assim como no reality em que pessoas pedem outras que nunca viram em casamento, no novo programa o participante não pode, de modo algum, ter contato íntimo com quem acabou de conhecer. Ao mesmo tempo, ainda que seja uma mistura de referências, o programa consegue imprimir alguma identidade.
Boa parte disso se deve à narradora Desiree Burch, que sempre tem um comentário irônico e hilário sobre os participante e sobre a estrutura de um reality. É um pouco do que vimos na versão americana do The Circle, mas ainda mais provocativo. Burch não ignora absurdos como a existência da “entidade eletrônica” chamada Lana (que parece um “purificador de ar”) e como o comportamento dos participantes oscila entre a completa ignorância e o total egocentrismo. A forma como ela insinua a paixão de Hailey por Francesca é um exemplo dessa implacabilidade de seu roteiro.
Supostamente, Brincando com Fogo deveria testar a capacidade que um jovem fervendo de hormônios tem de resistir ao sexo como única opção de interação com seu oposto. Para isso, vários deles, com corpos esculturais, são colocados dentro de uma casa num local paradisíaco e, numa espécie de reinvenção do De Férias com o Ex, não podem transar, nem beijar ou ter qualquer tipo de contato sexual - ou literalmente pagam por isso. Cada uma dessas ações diminui o prêmio de 100 mil dólares a ser dividido no final. A ideia é que sem o sexo eles comecem a construir ligações mais profundas, embora o resultado seja o sexo virando assunto em 90% das conversas.
É claro que os objetivos aqui não são exatamente nobres. Com homens de sunga e mulheres de biquini circulando pelo local 24 horas por dia, a exploração da sensualidade e a expectativa do coito tornam o programa tão sexualizado quanto qualquer outro. Contudo, não se pode negar que algumas reflexões importantes surgiram durante os oito episódios da temporada. Com oficinas de autoconhecimento, conflitos e reviravoltas, a edição consegue extrair alguma verdade do próprio entretenimento gratuito. O que faz a diferença em Brincando com Fogo é que ele nunca se leva a sério demais.
Dito isso, podemos tirar algumas lições dessa experiência social tão peculiar. Lana, com seu cone colorido, iria se orgulhar.
Beleza “padrão” não é garantia de satisfação emocional
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A primeira coisa que chama atenção em Brincando com Fogo é seu elenco. Os jovens foram escolhidos a dedo. Atletas, influencers, gente que, ou ganha a vida com a própria estrutura corporal, ou se aproveita dela para levar uma vida hedonista. Todos exalam uma sexualidade até agressiva em algum dos casos e essa padronização da aparência também provoca uma padronização de comportamentos, com mulheres seduzindo e homens caçando. Todos começam com um discurso igual: vamos nos divertir e transar com quantos pudermos.
Mas, com a proibição de contato, esse impulso predatório é obrigado a ser ligeiramente suprimido. As deficiências emocionais vão surgindo em alguns deles e, por mais belos e sensuais que sejam, revelam uma carência relutante, que eles disfarçam com mais futilidades. É impressionante como a realidade heterossexual padronizada vive numa bolha de egoísmo e insensibilidade; e como eles se exaltam de terem dado atenção apenas para os próprios corpo durante suas vidas. E é igualmente incrível como se torna visível a energia de vazio e infelicidade que ronda alguns deles.
Mulheres não precisam de “alfas”
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Assim como acontece com De Férias com o Ex, os homens que tem uma consciência do próprio apelo sexual, agem como se as mulheres fossem parte de um buffet. Bryce, o solteirão incorrigível que vive num barco e acha que é músico, chegou a usar essa palavra para falar delas. Vários deles, como Sharron e Harry, se autodenominam “alfas”. Além de ser a primeira letra do alfabeto grego (ou seja, onde tudo começa), é como se chamam também os machos dominantes de um sistema social, seja ele humano ou animal; e que invoca a ideia de intimidação, beleza e sucesso. Para vários dos participantes homens do programa (com exceção de Matthew e David, talvez), esse comportamento é parte do que se espera deles e essencial para a própria reputação.
Porém, embora as meninas comecem os episódios se deixando dominar e jogando conforme suas regras, não demora para que com a ajuda de uma mínima reflexão, várias delas tomem as rédeas da própria história. Chloe, por exemplo, embora não tenha conseguido firmar um relacionamento, não se deixava intimidar e nem seduzir pelo discurso “alfa” dos homens. Seu ponto alto foi a forma certeira como desmascarou e revidou o lastimável comportamento de Kori. Rhonda e Francesca, que tiveram relacionamentos no programa, também não admitiram a manipulação e “jogaram” de igual para igual com os meninos. No final das contas, Harry e Sharron é que precisaram reconsiderar. As mulheres não queriam ser dominadas, elas queriam uma parceria.
Os cafajestes não devem ser exaltados
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Outro grande ganho de Brincando com Fogo foi não ter copiado De Férias com o Ex na constante exaltação do cafajeste. Enquanto no reality da MTV os homens mais idiotas eram disputados e perdoados numa inacreditável constante, em Brincando com Fogo eles foram rejeitados ou redimidos. Francesca (que foi responsável por boa parte dos conflitos da edição e deve receber agradecimentos da produção por causa disso), passou pelo caminho de forma dupla. Ela começou suportando o comportamento imbecil de Harry, que chegou a mentir que foi ela quem o atacou com um beijo, apenas para ficar bem com o resto da casa. O episódio reforçou a cultura da demonização da mulher, com todos acreditando nele e não nela. Cultura que foi reiterada com Harry nunca se desculpando por isso, enquanto Francesca se desculpava por ter seduzido Kelz.
Entretanto, após esse distúrbio, foi Harry quem precisou se reiventar para mante-la ao lado dele. Francesca chegou inclusive a tomar a frente dos próprios interesses aceitando o convite de Kori, reforçando que não estará submetida a uma ideia de que encontrar um parceiro é parar de pensar em si mesma. Fez certo não cedendo ao predador (ela só queria provar para Harry que era dona da própria vontade), que provavelmente é um dos participantes mais cafajestes que já pisou num reality show (ningúem ganha do André, da primeira temporada de De Férias com o Ex). A postura machista, tacanha, egocêntrica e egoísta de Kori marcou uma evolução do formato: ele terminou sozinho, não enganou ninguém e foi eliminado.
Não transar não significa relacionamento garantido
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A ideia por trás de Brincando com Fogo tem um objetivo muito claro: talvez a dificuldade da juventude em ter relacionamentos sólidos seja a falta de verdadeiro envolvimento emocional, incapaz de surgir por conta da grande oferta sexual. Contudo, embora Harry e Francesca e Rondha e Sharron tenham saído alegadamente apaixonados do programa, pistas nas redes sociais dão conta de que nenhum dos namoros seguiu adiante.
Há fatores envolvidos nisso, como distância geográfica e ritmo de vida, mas o fato é que o formato é uma experiência sem garantia de sucesso. Assim como em Casamento às Cegas, a proibição, o sacrifício do impedimento, não foram efetivos na hora de avaliar a estatística.
O sexo não é um vilão
É claro que o envolvimento sexual imediato pode sim superficializar o encontro de duas pessoas, mas Brincando com Fogo precisa ser avaliado com cautela. Vivemos numa sociedade que sempre demonizou o sexo pelo sexo, como se a simples satisfação do corpo fosse algo condenável, não-cristão. As mulheres, principalmente, demoraram muito para conquistar o direito ao prazer sem que fossem julgadas como messalinas tentando adão com uma maçã. Quando o reality passa a punir o ato sexual com uma multa capital, ele reinvoca esses perigosos códigos. Será mesmo que as pessoas não se relacionam emocionalmente por causa do sexo?
Ao final da temporada, parece que o sexo é o menor dos problemas. A celebração constante da cultura do “corpo perfeito” e o reforço desses códigos através das redes sociais parecem ter piorado muito mais a assepsia afetiva dessa parcela da sociedade. Noções masculinas de que o homem nunca deve ceder, de que quanto mais oferta mais performance; noções femininas de que o melhor homem é o inacessível, o garanhão que será supostamente conquistado; aspectos estruturais da história da sociedade que estão enraizados e usam a intimidade física como escudo. Mas, não é o sexo que atrapalha os encontros. É a vaidade.