Há algo curioso sobre a geração dos Millennials, aqueles que estão na casa dos 20, 30 e poucos anos. Diferente de nossos pais, nós questionamos mais o mundo ao nosso redor e procuramos sentidos e significados em tudo: nas relações, no trabalho, na vida e em nós mesmos. Criada por Raphael Bob-Waksberg, a animação BoJack Horseman encerra sua jornada na Netflix como um dos grandes retratos das angústias e medos dos Millennials. A produção, que parecia apenas mais um desenho irônico para adultos, fala com precisão sobre vida, morte, erros e acertos, sem nunca soar presunçosa ao ponto de ter uma resposta para tais questões.
Ao longo de suas seis temporadas, BoJack Horseman se arriscou em vários formatos, como o episódio em que o cavalo protagonista vai para uma cidade no fundo do mar, ou o conhecido capítulo que se passa totalmente na mesma cena, com BoJack falando sobre a vida ao lado de sua mãe. A série se arriscou bastante e, por isso, havia uma grande expectativa sobre como seria a temporada final. Curiosamente, a escolha foi por uma narrativa mais tradicional, focada especialmente em flashbacks que revelam como BoJack chegou ao ponto em que chegou.
Como dito acima, a série não quer justificar as atitudes do cavalo, que é sim responsável pelas decisões erradas que tomou. O objetivo disso foi criar um relato real de como BoJack foi de um promissor astro da TV, para alguém cheio de vícios e com pouca confiança em si mesmo. E a produção não cai no erro de tentar apontar um culpado. A transformação de BoJack foi um processo que aconteceu em pequenas etapas, com momentos considerados totalmente inocentes, como quando ele bebe para finalizar uma cena de Horsing’ Around e passa a associar a bebida com a confiança em si mesmo, algo que se torna uma grande armadilha no futuro.
Além dos flashbacks, a temporada final traz algo novo ao falar sobre a depressão de Diane. Praticamente uma protagonista ao lado de BoJack, a personagem com voz original de Alison Brie finalmente enfrenta um de seus maiores desafios: encarar que há algo errado em se acostumar com a tristeza. Desacreditada desde a infância por uma família que não a apoia, Diane se habituou a viver em um constante estado de tristeza e, além disso, acreditou que todo esse sofrimento tinha algum objetivo, que ela seria especial após passar por tudo.
Os últimos episódios se dedicam especialmente a mostrar as várias fases do tratamento: os sentimentos bons quando os remédios fazem efeito, as crises de abstinência quando a pessoa para de tomar, a negação e, acima de tudo, a aceitação de que está tudo bem ter ajuda. Tudo isso é mostrado de uma forma dolorosamente real e a história de Diane termina sem um “final feliz” ou “final triste”. A depressão é algo com o que ela precisará conviver o resto da vida, com seus momentos bons e ruins.
Há outros dois personagens coadjuvantes que merecem destaque. O primeiro é Todd, que desenvolve uma relação com sua família. O personagem de Aaron Paul foi apresentado desde o começo como alguém que foi expulso por sua mãe “para tomar jeito na vida”. E a jornada do personagem não poderia ser mais simbólica. A verdade é que Todd jamais será o que sua mãe espera. O jovem é atrapalhado e confuso, ao mesmo tempo em que é criativo e realiza várias coisas. Todd não é apenas um “jovem sem futuro” e também não é só alguém inventivo. Ele é essas duas coisas ao mesmo tempo. E o caminho para a construção de uma relação saudável com sua mãe é a aceitação pelos dois lados. Ele precisa entender que sua mãe não é perfeita, e ela precisa saber que ele não existe para atender expectativas.
Culpa, medo e futuro
A segunda coadjuvante que tem seu arco lindamente finalizado é Princess Carolyn. Depois de realizar o sonho de ser mãe - e enfrentar todos os desafios que chegaram com isso - a personagem finalmente encontra seu lugar no mundo. Parte dos problemas dela sempre foram ligados a BoJack. Até mesmo durante seu relacionamento com Ralph, a jovem nunca conseguiu viver sua vida sem estender a mão para seu colega de trabalho e de vida. A relação entre os dois é confusa e errada de muitos jeitos, mas a forma com que Carolyn define toda essa dedicação, explicando que BoJack é o amor de sua vida e ela quer que esse amor tenha um final feliz, é a maior declaração de amor que um amigo pode fazer ao outro. A cena final entre os dois personagens reflete isso e tanto ele quanto ela podem seguir seus caminhos em paz agora.
Ainda que todos esses personagens sejam totalmente importantes, é em BoJack Horseman que reside a maior mensagem da série. Ele é o personagem “errado” que não queremos ser, mas não conseguimos evitar de gostar. A reflexão que o cavalo faz sobre sua trajetória é o que o liga à toda uma geração de jovens adultos confusos. BoJack se sente “a cópia de uma cópia”. Ele não sabe como deve agir ou como tomar boas decisões em sua vida. Até mesmo no episódio final, ele afirma que prefere estar em um lugar que toma as decisões por ele, assim não há o risco de “estragar tudo”.
BoJack é o retrato de uma geração que não foi preparada para enfrentar os problemas da vida. Entre criações superprotetoras e outras abusivas, parece que a geração anterior não soube nos dizer como viver e tentar ser feliz. Em um mundo repleto de informações e redes sociais, em que todos sabem da vida de todos sempre, parece que sempre estamos errados e, ao buscar a resposta nas nossas bases, não encontramos nada. Todos os lares mostrados na animação são disfuncionais de alguma forma: Diane cresceu em uma casa que não a entendia; BoJack carregou o peso de ter “destruído” os sonhos de seus pais; Todd não soube lidar com expectativas e foi expulso; Carolyn tinha uma mãe que acreditava que o casamento era a melhor solução para sua vida. O único que sai dessa curva, e pode ser considerado o mais feliz do programa, é o labrador Sr. Peanutbutter.
Fazer essa constatação tão dura nem de longe tem o objetivo de culpar pais pelos nossos problemas. Apenas traz a maior verdade de todas: para seguir em frente, é preciso deixar o passado para trás. Não esquecê-lo, apenas superá-lo a ponto do que aconteceu antes não ser mais capaz de te afetar. É isso o que BoJack faz nesta temporada final. Ele senta na mesa com todas as suas culpas do passado e se despede delas em um processo traumático, mas necessário para que ele dê um passo a mais em direção ao futuro. BoJack dá adeus àqueles que já foram e apenas após isso ele começa a pagar, de verdade, pelos erros que cometeu. E é assim, no meio da história, que o seriado escolhe ter o seu final. Os caminhos de todos ali continuarão e não há uma moral da história ou uma fórmula certa para viver. No meio do caos que é a vida, a única coisa que podemos fazer é enfrentar um dia de cada vez, da melhor forma possível.