Bom Dia, Verônica/Suzanna Tierie/Netflix

Netflix

Crítica

Bom Dia, Verônica - 1ª Temporada | Crítica

Netflix entrega série policial sólida, bem dirigida e atuada, mas sem a complexidade ou coragem do livro de Ilana Casoy e Raphael Montes

30.09.2020, às 15H22.

Para quem tem curiosidades mórbidas a Netflix é grande aliada, com seus documentários de true crime e séries sobre cultos. Mas, especialmente no Brasil, o audiovisual não é o principal chamariz de desgraceiras. A literatura, seja ou não ficção, é quem mergulha na mente de serial killers, crimes e intrigas. Considerando que a gigante do streaming investe bastante na produção nacional, era só questão de tempo até que a plataforma se cruzasse com nomes como Ilana Casoy e Raphael Montes.

Bom Dia, Verônica é o resultado desse encontro. Adaptação do livro de 2016 da dupla - na época publicado sob o pseudônimo Andrea Killmore -, a trama acompanha a complicada jornada da escrivã Verônica Torres (Tainá Muller) para encontrar um criminoso manipulador, e sua busca por justiça à uma vítima de violência doméstica. É tanto uma história sobre a enorme ambição de Torres de lutar contra um sistema burocrático, quanto o inferno que Janete (Camila Morgado) sofre nas mãos de Brandão (Eduardo Moscovis), agressor com tendências assassinas.

Não é uma história fácil de digerir. É visível que a produção se esforçou em como representar um tema tão delicado sem banaliza-lo. Isso transparece especialmente no arco de Janete, que é conduzido com tamanha sensibilidade que não transforma a dor em espetáculo, mas sim expõe as pequenas e contínuas violências cotidianas. A abordagem, porém, não impede que o seriado seja repleto de ação. O suspense policial carrega viradas a todo momento, e não desperdiça um minuto de seus oito episódios. O ritmo é rápido e os acontecimentos, intensos e impactantes. É surpreendente que um drama sobre algo tão pontual e doloroso seja tão maratonável, sem perder a compostura. Mas, para tocar a trama dessa forma, algo foi perdido no caminho.

Uma adaptação impossível

Lançado em 2016, Bom Dia, Verônica não é um livro para os fracos de coração. Constantemente, Casoy e Montes testam os limites do aceitável, seja na violência, infidelidade, necrofilia e tortura gráfica. Mas esses elementos não são gratuítos, e sim aspectos de um conto sobre a podridão humana em todas suas formas. O desafio ao leitor é encontrar empatia e esperança num cenário que frequentemente parece escasso, e em uma protagonista bastante falha, de atitudes duvidosas.

Mesmo com o envolvimento dos criadores, a série da Netflix parece não confiar essa missão ao espectador. A adaptação pega emprestada a premissa, a ambientação e as viradas de roteiro, mas fica com medo de se sujar. Assim, reconfigura estes elementos em novos cenários que são um pouco decepcionantes aos leitores.

A figura televisiva de Verônica é bastante emblemática dessas mudanças. Na obra original, a escrivã é bastante empática com as vítimas, mas parte em busca de justiça de forma impulsiva, com certa desconfiança do próprio sistema burocrático que faz parte. A decisão tem consequências salgadas no seu casamento, no seu trabalho, e na vida daquelas que tenta ajudar. A ambição da protagonista lembra que nem sempre a vontade de fazer o bem é o primeiro passo em um processo de muita dor e sofrimento. Porém, isso não é refletido no seriado, apesar de tentar chegar no mesmo argumento sem o árduo caminho.

Na Netflix, Verônica é igualmente empática com quem ajuda, mas não há dúvidas quanto às suas formas de atuação. Na verdade, a policial é exaltada como uma das poucas boas almas de um escritório em que todos têm algo a esconder. Enquanto seu chefe, Wilson Carvana (Antonio Grassi), faz corpo mole para investigar um estranho caso de suicídio, a delegada Anita (Elisa Volpatto) demonstra hostilidade ao envolvimento de Verônica na investigação. A rivalidade entre as duas não só soa gratuita, como também ajuda a inocentar a figura de Carvana - descaradamente machista no livro - e reforçar que há algo estranho na forma que atua a delegacia de homicídios.

O seriado abre mão de qualquer ambiguidade moral que torna a obra original tão intrigante. Lá, Verônica é agente responsável pelas suas ações e, consequentemente, seus erros, que batem com o impacto de um chute nos dentes. Na TV ela é vítima da burocracia, da corrupção, dos ciúmes de seu marido, e de tudo que lhe atrapalha de fazer um bom trabalho. Ao invés de enfiar as mãos para encontrar o ouro no meio da sujeira, a Netflix entrega uma versão higienizada de Bom Dia, Verônica. Isso se reflete até na ambientação. O livro percorre toda a cidade de São Paulo, do alto da Serra da Cantareira às ruas do Parque do Carmo. O programa, por mais que cite alguns locais de nome, é rodado apenas nas tão conhecidas locações da região central e do centro expandido. Assim, a plataforma transforma uma história de crime urbano, enraizado em toda parte da cidade, em um cartão postal.

De forma alguma Bom Dia, Verônica é uma série ruim. Seu problema está na falta de personalidade em relação ao material que se propôs a adaptar. Na realidade, é um seriado policial bastante sólido, ainda que meio genérico. No entanto, qualidade não é um problema quando se trata da técnica, visto que o seriado é de altíssimo nível de produção. A direção dá força aos momentos mais gráficos e marcantes com excelência, e a fotografia acerta em cheio ao conduzir o suspense com as cores e luzes macabras dos filmes neo noir.

O verdadeiro destaque fica para o elenco, que traz naturalidade e também respeito com um tema tão sensível. Quem demonstra todo o potencial da narrativa são Camila Morgado e Eduardo Moscovis. O arco de Janete e Brandão é facilmente o mais complexo de toda a trama, e os dois atores o tiram de letra. Morgado se joga por inteiro na vítima, com dor e culpa internalizada sem o auxílio de diálogos. O Brandão de Moscovis, por sua vez, é bastante intenso e amedrontador. Assim como Verônica, os dois personagens também não têm a mesma ambiguidade moral do livro. Ter atores tão bons nesses papéis deixa a vontade de que o seriado tivesse dado a oportunidade para que pudessem explorar todas as nuances dessas pessoas quebradas.

No geral, Bom Dia, Verônica consegue prender o espectador na cadeira pelo suspense, brutalidade e ação, ao mesmo tempo que conscientiza sobre um dos piores males da sociedade brasileira. A série só faz isso da forma mais segura o possível. Sem voz própria, e sem a ousadia do material-base. É louvável que o programa dê os holofotes à luta contra o abuso doméstico, tema que precisa sim ser trazido a debate com urgência. Mas, como narrativa televisiva, a Netflix se contenta em não ir muito além de passar a mensagem.

Nota do Crítico
Bom