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Crítica

Cidade Invisível mistura folclore brasileiro e suspense em narrativa envolvente

Criada por Carlos Saldanha, nova série da Netflix traz roupagem inédita para personagens clássicos e propõe debate importante entre progresso versus tradição

09.02.2021, às 15H18.
Atualizada em 09.02.2021, ÀS 19H14

A música de ninar da Cuca sempre teve algo de assustador - quem em sã consciência poderia ficar tranquilo com a ideia de que alguém viria te pegar a noite, quando seus pais não estivessem em casa? Graças ao Sítio do Pica-Pau Amarelo, a ameaça da bruxa acabou atenuada no imaginário brasileiro pela imagem da jacaré loira que, embora vilanesca, era mais divertida do que propriamente sinistra. Porém, depois de décadas de hegemonia das histórias de Monteiro Lobato e das adaptações da TV Globo, essa visão ingênua e fofa foi finalmente desafiada na série Cidade Invisível, história de Raphael Draccon e Carolina Munhoz que tem Carlos Saldanha como showrunner. Com a proposta de resgatar as figuras do nosso folclore e o fator mistério que as envolve, a produção da Netflix usa o suspense e a trama policial como pretextos para revelar que há mais do que histórias infantis na nossa tradição oral. Muito mais.

O seriado acompanha Eric, um detetive da polícia ambiental do Rio de Janeiro vivido por Marco Pigossi. Como também é padrão em produções hollywoodianas, ele é muito comprometido com seu trabalho, dando mais atenção à averiguação dos casos do que à família. Logo, não é surpresa para sua esposa, a antropóloga Gabriela (Julia Konrad), quando ele recusa seu convite para ir com a filha para a festa junina na vila de pescadores onde ela trabalha. Para seu azar, justamente nessa noite Eric sofre um trauma familiar que vai assombrá-lo não apenas como marido em luto e policial em busca de respostas. Porque, entre descobertas inusitadas, como um boto que vira homem e corpos que somem do IML, sua investigação revela que todos os eventos bizarros na Vila Toré estão conectados. No entanto, a única explicação possível desafia tudo o que Eric acredita, até mesmo sua identidade.

Além de uma oportunidade comercial, o criador da série Carlos Saldanha enxergou nessa mistura entre folclore e suspense uma maneira de levantar o debate entre as mudanças vindas de um dito progresso e a preservação do que nos é ancestral. Por isso, contrariando a expectativa dos fãs acostumados com suas animações voltadas para crianças, decidiu abordar a trama de Cidade Invisível a partir da perspectiva de um adulto cético e de carne e osso, como são também seus espectadores. Assim, quando mostra que Eric não é capaz de fugir da realidade fantástica na qual está inserido, não importa quanto tente, Saldanha deixa subentendido que nós não deveríamos também renegar nossa cultura. E esse é de longe o grande mérito da série.

Debate que permeia toda a trama, a desvalorização das tradições orais se faz presente até na caracterização das figuras do folclore. Saci, Cuca e companhia vivem às margens da sociedade carioca, escondidos, e travam uma guerra fria com inimigos - reais e espirituais - que querem eliminá-los. Apesar de ser uma representação interessante, é notável o desequilíbrio na abordagem das trajetórias individuais. Enquanto Inês, a personagem de Alessandra Negrini, tem bastante espaço para expor seus objetivos, outros personagens vêm e vão na série quando é conveniente ao roteiro. Isac (Wesley Guimarães) é talvez o caso mais claro desse descompasso. No início da trama, ele é muito importante por servir de porta de entrada para a filha de Eric - e para o próprio espectador - no universo urbano e folclórico de Cidade Invisível. Mas, passados os primeiros episódios, ele é completamente esquecido. Só volta a ter relevância na reta final, quando a produção atinge o clímax.

O mesmo ocorre com outros personagens do núcleo fantástico, como Tutu (Jimmy London) e Camila (Jéssica Córes), em maior ou menor grau, mas não fica restrito a eles. Na realidade, se estende ainda às figuras envolvidas na conspiração empresarial que ameaça a Vila Toré e, consequentemente, suas tradições. Por sorte, esse deslize acaba ficando em segundo plano diante da força das performances e do carisma do elenco, com destaque para Fábio Lago como o grosseiro Iberê, Córes e o próprio Pigossi. Mas, para obter esse resultado, é igualmente importante o clima envolvente e misterioso de toda a história, que flerta vez ou outra com o terror, e traz elementos escancaradamente brasileiros. Afinal, em que outro lugar do mundo uma perícia seria suspensa para que a legista fosse ver um jogo do Flamengo?

No final, a investigação policial acaba sendo o fator mais entediante de toda a trama, porque não há nada de novo ali. Convenhamos, a figura do detetive que desafia seu superior e vira noites sem dormir para chegar à solução do caso está longe de ser algo original. Por isso, todos os desenvolvimentos são previsíveis e pouco empolgantes, até a entrada dos elementos mágicos. É no deslumbramento com o desconhecido que a trajetória de Eric brilha.

Em um país que sofre de amnésia seletiva, preservar a memória e a cultura de seu povo, ainda mais um povo tão heterogêneo quanto o brasileiro, é um desafio e tanto. Por isso, obras como Cidade Invisível têm uma importância e responsabilidade maiores do que meramente exportar um produto e voltar a atenção do mundo para o nosso audiovisual. Embora possa se debater a forma como o resgate do folclore foi feito, sobretudo a escolha de ambientar a história no Rio de Janeiro e não nas regiões Norte e Nordeste, é inegável que a série da Netflix larga já com o mérito de ter colocado novamente na boca dos brasileiros nomes como Saci, Cuca e Iara. Nossa cultura, diversa como é, merece ser celebrada não só como histórias infantis, mas pela sua riqueza e fantasia. E Cidade Invisível é a prova de que dá para fazer isso inclusive de forma comercial.

Nota do Crítico
Ótimo