Em uma das biografias de Marilyn Monroe (estranhamente nunca citada na minissérie), o escritor Norman Mailer descreve as tentativas da aspirante a atriz de conseguir entrar no mercado, depois de uma notória carreira de modelo. Embora contido a respeito, Mailer não consegue evitar totalmente a menção a executivos e produtores com os quais Marilyn foi vista dezenas de vezes na época em que lutava por um papel importante na Fox. Ao falar sobre esse determinante período, o autor diz que “entre essas relações (com os homens importantes), Marilyn foi possuída, até mesmo diabolicamente, pela necessidade de ser uma estrela”. Anos depois, já muito famosa, se vingava daqueles homens sendo a melhor atriz das telas e a pior dos bastidores.
Quando Hollywood, minissérie criada por Ryan Murphy e Ian Brennan, foi anunciada como um dos novos trabalhos resultantes do acordo de 300 milhões de Murphy com a Netflix, o público tomou-se de expectativas. Com a liberdade que teria na plataforma e com a maneira transgressora e violenta com a qual sua cabeça pode funcionar, esperava-se que histórias como essa de Miss Monroe fossem ser o mais “leve” acerca da produção. Esperavam-se esqueletos nos armários, mortes, crimes, toda a podridão de uma indústria que criava sonhos enquanto moía vidas. Afinal, Murphy estripa e mutila todo ano em episódios de American Horror Story. Por que não mostrar como o cinema mutilou e estripou sonhos de fama e sucesso?
Contudo, a parceria com Ian Brennan é estratégica. Enquanto Brad Falchuk (o terceiro elemento do grupo) fica com as produções mais adultas, Brennan foi o responsável principal por vários episódios de Glee, Scream Queens e por The Politician também. Falchuk é o lado obscuro de Murphy e Ian Brennan o mais divertido. O que ambos os lados tem em comum é algo que move o trabalho de Ryan Murphy em todos os títulos nos quais trabalha: otimismo. Ainda que o cenário construído seja extremamente violento, até as temporadas mais sombrias de AHS tiveram finais felizes. É como se o showrunner se recusasse a aceitar o mundo como ele é, tentando extrair dessa realidade uma reeducação perceptiva: se apesar de tudo coisas boas acontecerem muitas vezes, talvez alguma parcela do mundo absorva essa energia.
A minissérie Hollywood segue essa diretriz e tem na abordagem masculina o seu grande diferencial. Questões como assédio, abuso e preconceito são majoritariamente focadas nos homens, o que é pouco ilustrado em produções do tipo. Jack (David Corenswet), um personagem fictício que deseja ser um astro; e uma versão muito livre do ícone Rock Hudson (Jake Picking), são os nomes em busca do sucesso como atores. Archie (Jeremy Pope) é um roteirista negro que também sonha com a tela grande. Ambos convergem num posto de gasolina que funciona como ponto de prostituição (e que existiu), administrado pelo cafetão Ernie (Dylan McDermott, numa atuação inspirada). As vidas de todos eles mudan quando o filme Meg, dirigido por Raymond Ansley (Darren Criss) é aprovado, mesmo com Camille Washington (Laura Harrier), uma atriz negra, no papel principal.
Fantasia Realista
Como sempre acontece com as histórias de Murphy, o ritmo é intenso, os personagens são imediatamente carismáticos e várias liberdades narrativas são tomadas. É assustador como ele consegue um aproveitamento imenso do elenco jovem sem perder de vista a entrega do elenco maduro. Personagens como o repugnante Henry Wilson (Jim Parsons), o produtor Dick Samuels (Joe Mantello), Avis Amberg (Patti LuPone) e Ellen Kincaid (Holland Taylor) são construídos com apuro e sensibilidade. Há uma interferência direta constante desse “mundo ideal” que os roteiros vão lentamente injetando na realidade dos personagens. Mas, esse é um artíficio que os espectadores de Quentin Tarantino conhecem muito bem e que gera reações apaixonadas, para o bem e para o mal.
A questão é que na construção do que seria a proposta de Hollywood havia uma quantidade muito grande de itens que passariam por essa “peneira fantástica”. Enquanto em Once Upon a Time in Hollywood Tarantino precisa consertar apenas um hematoma na exploração de um massacre como obra de cultura pop, na minissérie de Murphy não se trata só de um hematoma, mas de um verdadeiro espancamento. O racismo, a homofobia, a exploração, o assédio, o abuso, o machismo... Quando os curativos começam, lá pelos dois episódios finais, a sensação é que a história virou uma declaração de ingenuidade absoluta, ainda que seja preciso manter em perspectiva que o objetivo maior é o de estabelecer que o curso dos acontecimentos e o presente que nós vivemos, teria sido outro, melhor, se as decisões mais difíceis tivessem sido tomadas naquela época.
Todas as estatísticas a respeito de Hollywood são muito assustadoras, até hoje. Apenas uma mulher negra venceu o Oscar de Melhor Atriz em mais de 80 anos. Foi Hale Berry, em 2002. Apenas seis mulheres negras venceram o de Coadjuvante. O primeiro Oscar dado a um filme dirigido por um homem negro foi em 2014, por 12 anos de Escravidão e um roteirista negro só venceu recentemente. Foi Jordan Peele, por Corra!. Atores homossexuais ainda se escondem por medo de perderem trabalhos e os escândalos de assédio promovidos por Harvey Weinstein levantaram movimentos importantes apenas na última década. Olhando para essa panorama, fica difícil ser ranzinza com uma dramaturgia que preferiu brincar de reescrever a história.
Toda essa fantasia realmente não faz parte de um retrato complexo da indústria. Mas, esse é mais um pedaço da obra de um homem que contradiz sua transgressão com otimismo. Esse mundo de Ryan Murphy é lindo. Não podemos culpar ninguém por preferir viver dentro dele.