Se O Irlandês é o representante do movimento antisindical no Oscar, como querem ver os críticos que inserem o filme de Martin Scorsese no contexto do esvaziamento dos sindicatos que se vê nos Estados Unidos hoje, então o documentário Indústria Americana é o seu oposto. Consciência de classe é a bandeira do filme indicado na categoria de melhor documentário; não por acaso, o longa é o primeiro produzido pela companhia Higher Ground, de Michelle e Barack Obama.
Demonizada em campanha por Donald Trump, a China aparece no filme menos como uma rival geopolítica e mais como um elemento de disrupção que, em perspectiva, desperta os Estados Unidos para uma consciência da precariedade do subemprego - subemprego esse que sempre permaneceu invisível pois é tradicionalmente relegado aos imigrantes e não aos americanos "puros" de colarinho azul.
Depois de relembrar rapidamente o fechamento de uma fábrica da General Motors em Dayton, Ohio, na ressaca da crise de 2008, que provocou demissões em massa, os diretores Julia Reichert e Steven Bognar registram a segunda vida da fábrica, entre 2015 e 2017, quando uma companhia chinesa, fabricante de vidros automotivos, ocupa a instalação e contrata americanos para fazer o serviço ao lado de gerentes chineses. A inversão de valores se dá ao longo do filme com requintes de um The Office tragicômico, à medida em que os americanos atinam, subjugados pelo capital chinês, para sua nova condição de mão de obra barata.
A escolha de uma ex-fábrica da General Motors é oportuna e obviamente simbólica: o próprio cinema americano lida há décadas com os desmontes da mítica indústria automobilística do país, emblema da altivez americana. No Oscar deste ano temos Ford vs Ferrari representando essa herança, o orgulho local; de certa forma, Indústria Americana revisita Fábrica de Loucuras, a comédia de 1986 de Ron Howard que lidava com a ameaça japonesa - os japoneses sempre cartesianos, ultraprodutivos - contra as montadoras americanas nos anos 1980.
Reichert e Bognar não precisam se esforçar muito para pintar os chineses como tipos desumanizados, robotizados pelo pensamento industrial, em contraponto ao calor do americano do Centro-Oeste, que recebe o estrangeiro amigavelmente em almoços ao ar livre e sessões de tiro ao alvo. O registro sentimental, que se aproxima do paternalismo, evoca a forma como Michael Moore retratava os mesmos trabalhadores de colarinho azul nos seus primeiros documentários (inclusive Roger & Me, primeiro longa de Moore, tratava do fechamento de uma fábrica da mesma GM em Flint, na vizinha Michigan).
Ao mesmo tempo em que se enfraquece nesse maniqueísmo (o ápice é a cena chorosa em que o criador de cavalos, símbolo da Terra dos Livres, diz que ainda considera o chinês calculista "seu irmão"), Indústria Americana não deixa de encontrar imagens-sínteses bem fortes para demarcar um estado melancólico das coisas e um mal-estar generalizado diante do capitalismo. Os arcos dos personagens são fechados de forma muito concisa e impactante, seja com um acidente de trabalho ou ou uma demissão sumária. Falando em síntese, não fica faltando nem uma menção ao "Make America Great Again".
A música é, em boa medida, a grande responsável por fazer tão suavemente a costura entre as mudanças de humores que se vê em Indústria Americana. O trabalho do compositor Chad Cannon começa triunfante, quase marcial, na montagem de imagens quando somos apresentados à reativação da linha de montagem. Ao mudar um ou outro elemento de sopro, como a tuba, os temas de Cannon rapidamente migram para a pantomima, e o que há de tragicômico no choque cultural passa a reger o registro.
Essa transição termina muito bem encaixada no documentário porque afinal o que temos aqui não é só uma inversão de papéis - quando o povo americano passa a ser ridicularizado pelo novo colonizador - mas principalmente um intercâmbio de valores, uma vez que toda a inspiração cafona dos chineses para seus eventos de firma e momentos motivacionais deriva de um senso ocidental de espetáculo. A cena do americano embriagado chorando, sem palavras, depois de ver pessoalmente na China um desses shows ocidentalizados, não poderia ser acompanhada por outro tema senão um sad trombone.