Indústria Americana/Netflix/Reprodução

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Crítica

Indústria Americana

Com ecos de Michael Moore, documentário une o tragicômico e o paternalista

29.01.2020, às 17H27.

Se O Irlandês é o representante do movimento antisindical no Oscar, como querem ver os críticos que inserem o filme de Martin Scorsese no contexto do esvaziamento dos sindicatos que se vê nos Estados Unidos hoje, então o documentário Indústria Americana é o seu oposto. Consciência de classe é a bandeira do filme indicado na categoria de melhor documentário; não por acaso, o longa é o primeiro produzido pela companhia Higher Ground, de Michelle e Barack Obama.

Demonizada em campanha por Donald Trump, a China aparece no filme menos como uma rival geopolítica e mais como um elemento de disrupção que, em perspectiva, desperta os Estados Unidos para uma consciência da precariedade do subemprego - subemprego esse que sempre permaneceu invisível pois é tradicionalmente relegado aos imigrantes e não aos americanos "puros" de colarinho azul.

Depois de relembrar rapidamente o fechamento de uma fábrica da General Motors em Dayton, Ohio, na ressaca da crise de 2008, que provocou demissões em massa, os diretores Julia Reichert e Steven Bognar registram a segunda vida da fábrica, entre 2015 e 2017, quando uma companhia chinesa, fabricante de vidros automotivos, ocupa a instalação e contrata americanos para fazer o serviço ao lado de gerentes chineses. A inversão de valores se dá ao longo do filme com requintes de um The Office tragicômico, à medida em que os americanos atinam, subjugados pelo capital chinês, para sua nova condição de mão de obra barata.

A escolha de uma ex-fábrica da General Motors é oportuna e obviamente simbólica: o próprio cinema americano lida há décadas com os desmontes da mítica indústria automobilística do país, emblema da altivez americana. No Oscar deste ano temos Ford vs Ferrari representando essa herança, o orgulho local; de certa forma, Indústria Americana revisita Fábrica de Loucuras, a comédia de 1986 de Ron Howard que lidava com a ameaça japonesa - os japoneses sempre cartesianos, ultraprodutivos - contra as montadoras americanas nos anos 1980.

Reichert e Bognar não precisam se esforçar muito para pintar os chineses como tipos desumanizados, robotizados pelo pensamento industrial, em contraponto ao calor do americano do Centro-Oeste, que recebe o estrangeiro amigavelmente em almoços ao ar livre e sessões de tiro ao alvo. O registro sentimental, que se aproxima do paternalismo, evoca a forma como Michael Moore retratava os mesmos trabalhadores de colarinho azul nos seus primeiros documentários (inclusive Roger & Me, primeiro longa de Moore, tratava do fechamento de uma fábrica da mesma GM em Flint, na vizinha Michigan).

Ao mesmo tempo em que se enfraquece nesse maniqueísmo (o ápice é a cena chorosa em que o criador de cavalos, símbolo da Terra dos Livres, diz que ainda considera o chinês calculista "seu irmão"), Indústria Americana não deixa de encontrar imagens-sínteses bem fortes para demarcar um estado melancólico das coisas e um mal-estar generalizado diante do capitalismo. Os arcos dos personagens são fechados de forma muito concisa e impactante, seja com um acidente de trabalho ou ou uma demissão sumária. Falando em síntese, não fica faltando nem uma menção ao "Make America Great Again".

A música é, em boa medida, a grande responsável por fazer tão suavemente a costura entre as mudanças de humores que se vê em Indústria Americana. O trabalho do compositor Chad Cannon começa triunfante, quase marcial, na montagem de imagens quando somos apresentados à reativação da linha de montagem. Ao mudar um ou outro elemento de sopro, como a tuba, os temas de Cannon rapidamente migram para a pantomima, e o que há de tragicômico no choque cultural passa a reger o registro.

Essa transição termina muito bem encaixada no documentário porque afinal o que temos aqui não é só uma inversão de papéis - quando o povo americano passa a ser ridicularizado pelo novo colonizador - mas principalmente um intercâmbio de valores, uma vez que toda a inspiração cafona dos chineses para seus eventos de firma e momentos motivacionais deriva de um senso ocidental de espetáculo. A cena do americano embriagado chorando, sem palavras, depois de ver pessoalmente na China um desses shows ocidentalizados, não poderia ser acompanhada por outro tema senão um sad trombone.

Nota do Crítico
Bom