Pode ser que você não saiba, mas, apesar de tratado como um filme solo, Legado nos Ossos, longa espanhol que entrou recentemente no catálogo da Netflix, é a segunda parte de uma série cinematográfica. Baseado nos livros de Dolores Redondo, o longa é a continuação de O Guardião Invisível (também disponível na plataforma) e ambos fazem parte da Trilogia Baztan. Apesar de continuar a história iniciada em outra produção, centrada nos crimes investigados pela inspetora Amaia Salazar (Marta Etura), a sequência se sustenta com um novo mistério a ser resolvido.
A história de Legado começa em 1611, uma época onde a bruxaria era comum na região de Navarra, na Espanha. O inquisidor Alonso de Salazar chega ao local para investigar eventos obscuros praticados pelos moradores. Tais atos eram segredos muito bem guardados por todos e a caça às bruxas se tornou implacável. A história corta para 2019 e reencontramos a inspetora Amaia, agora mãe de um filho recém-nascido. Logo em seu retorno ao trabalho, novos crimes começam a surgir em Baztan, município basco nos arredores de Navarra e sua cidade natal. Os crimes, como em todas as boas histórias de suspense, são um tanto quanto macabros. Após assassinar suas vítimas e decepar um dos braços, os criminosos cometem suicídio e deixam apenas um bilhete com uma palavra escrita: Tarttalo.
O mistério em torno das mortes é a verdadeira atração do longa, que envolve antigos rituais da região basca. O fato de ir tão fundo em suas referências acaba tornando as explicações um tanto recorrentes e detalhadas, não deixando a mente do espectador trabalhar por si mesma. O filme se modela no diálogo e sua fotografia soturna faz a narrativa parecer mais lenta do que realmente é.
O diretor Fernando González Molina trabalha o longa com um tom pesado, se aproveitando bastante do material original de Redondo, que aqui também ganha créditos como roteirista. O fato de alguns aspectos da produção mencionarem a igreja e a Opus Dei fortalecem esse tom sombrio, muitas vezes destacado nos diálogos que envolvem a origem do mal. Há um claro embate entre a visão dos religiosos e a propagada por Freud e outros teóricos da psicologia, que muitas vezes relacionam as más condutas das pessoas com algum problema durante seu crescimento ao invés de abordarem o mal oriundo das maldições e energias negativas.
Outro bom atrativo da produção para os fãs de cultura pop são alguns integrantes do elenco. O responsável por viver o legista San Martin é Paco Tous, famoso por interpretar o assaltante Moscou em La Casa de Papel; Francesc Orella, que dá vida ao detetive Fermín Montés, fiel parceiro de Amaia, protagonizou a série Merlí, outra produção espanhola da Netflix. Para os amantes de cinema, o ator argentino Leonardo Sbaraglia, intérprete do juiz Javier, já atuou em filmes como Dor e Glória e Relatos Selvagens, ambos indicados ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro.
No entanto, com tantos detalhes a serem solucionados, o filme se perde em seus momentos finais, deixado em aberto explicações que enriqueceriam ainda mais a narrativa. Talvez pela certeza de que a terceira parte será produzida – Ofrenda a la Tormenta, que tinha previsão de estreia para junho de 2020 – a conclusão de Legado nos Ossos se tornou preguiçosa demais para que um longa que prometia entregar muito mais.