Após anos reinando soberana entre os serviços de streaming, a Netflix viu o surgimento de concorrentes que aos poucos estão retirando propriedades da plataforma para enriquecer seus catálogos. Em busca de produções originais, o serviço passou a investir em filmes de cineastas renomados como Alfonso Cuarón e Martin Scorsese, longas reconhecidos em festivais como Jóias Brutas e Meu Nome é Dolemite, e também adaptações inéditas de obras que fujam do mainstream. Um bom exemplo da última categoria é Locke & Key, adaptação da HQ homônima escrita por Joe Hill e desenhada por Gabriel Rodriguez. Misturando fantasia e horror e cheia de homenagens a obras clássicas, a primeira temporada do seriado não aproveita seu potencial por completo.
À primeira vista, Locke & Key pode parecer uma tentativa de embalar o sucesso de produções como Stranger Things. Tendo como protagonista os jovens irmãos Tyler (Connor Jessup), Kinsey (Emilia Jones) e Bode (Jackson Robert Scott) Locke, a produção quase toma o velho caminho de “crianças versus forças sobrenaturais” de forma protocolar. A seu favor, a série cria uma rica mitologia capaz de mexer com a imaginação do público e criar um vínculo baseado não só no temor pelo bem estar dos heróis, mas também na curiosidade a respeito de suas próximas descobertas.
Junto de sua mãe Nina (Darby Stanchfield), o trio se muda para uma antiga mansão da família em Massachusetts após o traumático assassinato do patriarca Rendell (Bill Heck) em Seattle. Lá, eles descobrem que a casa é cheia de chaves mágicas que conferem poderes sobrenaturais a quem as utilize. Capazes de levar seu usuário a qualquer lugar, transformá-lo em fantasma e até literalmente abrir sua cabeça, os artefatos mostram o lado mágico do mundo aos Locke. Conforme o trio descobre as chaves, acabam cruzando o caminho de Dodge (Laysla De Oliveira), figura ligada ao passado de seu pai que precisa das chaves para se libertar de uma prisão mágica e tomar o poder.
Com potencial de cair no gosto do público graças ao seu universo tão particular, a primeira temporada infelizmente sofre com uma direção que não confere peso aos acontecimentos. Cenas chave, como o assassinato de Rendell, são executadas sem brilho algum, de forma quase preguiçosa. Isso afeta a narrativa da temporada como um todo, pois é apenas nos episódios finais em que encontra a coerência e a gravidade que a trama exige.
A inconsistência pode ser encontrada também no elenco. Por um lado há o Bode de Jackson Robert Scott, um dos personagens mais carismáticos ao transmitir verdade em sua versão de uma criança criativa que está amadurecendo, e também Emilia Jones, que se esforça para tornar Kinsey uma adolescente verossímil em suas angústias e falhas. Por outro, o Tyler de Connor Jessup e especialmente a Nina de Darby Stanchfield não conferem o peso da culpa que seus personagens carregam, e por vezes parecem perdidos em suas próprias tramas. Este problema fica ainda mais evidente quando estão acompanhados de personagens coadjuvantes, que não raramente roubam os holofotes justamente por entender o tom dramático que as cenas pedem.
Por outro lado, nota-se desde os primeiros episódios que a série faz um bom trabalho na transição das HQs para as telas. Sem medo de fazer modificações em prol da história a ser contada, a produção encontra uma forma própria de abordar eventos, personagens e até artefatos mágicos. Se o quadrinho é quase totalmente focado nos irmãos Locke, o seriado distribui o foco entre seus protagonistas e coadjuvantes, dando espaço para que o quebra-cabeças seja montado por várias peças diferentes.
Assim como no quadrinho que usa de base, a série faz questão de prestar reverência às obras que servem como inspiração. Não demora muito para que as crianças cheguem à conclusão de que magia não funciona em adultos “assim como em As Crônicas de Nárnia”, ou que os mais velhos passem a fazer parte de um clube de fãs de horror chamado Esquadrão Savini, em homenagem ao Tom Savini, especialista em efeitos especiais conhecido por filmes como Despertar dos Mortos e Sexta-Feira 13. A produção é inteligente em não apostar apenas na nostalgia, mas também dar espaço para a cultura pop atual, com acenos a Harry Potter e Billie Eilish.
Com um forte gancho deixado para o futuro, não é de se estranhar que a equipe já esteja trabalhando na segunda temporada. Dona de uma mitologia que abre infinitas possibilidades, Locke & Key pode se tornar uma das mais marcantes obras dessa geração. Mas, para isso, precisa encontrar uma forma de contar sua história sem se perder em si mesma.