Em seu looping de cancelamentos constantes, a Netflix deixa escapar pistas dos resultados de várias de suas decisões. A pressa por preencher seu catálogo com o máximo possível de séries originais atraentes é uma delas. Descriteriosa, a plataforma abarrota seus assinantes de produções genéricas, simplórias, que acabam depondo contra sua reputação e antecipando cancelamentos inevitáveis. Luna Nera (Lua Negra, no português) é um outro grande exemplo dessa imersão em séries que tentam reproduzir modelos bem sucedidos, sem sucesso. Ao lado dela estão Frontier, Sempre Bruxa, Spinning Out e várias outras.
Citar Sempre Bruxa no texto também é relevante por outra razão. A série teen da Colômbia fala de uma jovem bruxa perseguida e apaixonada. Luna Nera, da Itália, se apresenta com ares de grande inovação, mas está esperando pelos espectadores exatamente na mesma esquina. Na história, Ade (Nina Fortaras) é uma jovem parteira que após pressentir a morte de um bebê é acusada de bruxaria. Para se salvar ela foge com o irmão mais novo para a floresta e é resgatada por um grupo de mulheres que estão – adivinhem? – esperando pela "escolhida”. Se for começar a assistir Luna Nera, se prepare. Os chavões do gênero estão todos lá.
A desculpa para levar a produção adiante é a suposta viagem à Itália do século 17, quando a inquisição avançava esmagando mulheres por toda e qualquer razão. A equipe de criação da série é composta por um time inteiramente feminino, o que cobre de boas expectativas o resultado de toda essa pesquisa histórica e ideológica. Francesca Comencini, Susanna Nicchiarelli e Paola Randi são responsáveis pela produção do projeto. O roteiro da série é desenvolvido por Francesca Manieri, Laura Paolucci e Vanessa Picciarelli; que foram atrás do livro As Cidades Perdidas – Lua Negra, de Tiziana Triana, encontrar seu material de criação. Tiziana, contudo, se envolveu como consultora direta da adaptação.
Italian Soap
Todo esse grande time tinha tudo para produzir uma série que levasse a realidade das mulheres italianas do século 17 (sendo essa a realidade das mulheres no mundo todo) a um patamar elevado, onde a bruxaria poderia ser concreta ou metafórica, dependendo do tipo de narrativa que elas quisessem abordar. A decisão tomada foi a mais óbvia. Os manuscritos históricos usados como base pela autora viraram uma novela adolescente centrada no amor de Ade pelo jovem Pietro (Giorgio Belli), que é – adivinhem de novo? – filho de um voraz caçador de bruxas, daqueles que formam grupos mascarados que saem pela cidade enforcando e queimando ao menor sinal de premonição.
Em apenas seis episódios a série esgota todas as restritas possibilidades que abre. O valor de produção aparece nos bons efeitos especiais, mas fica ausente no alcance da narrativa. Com basicamente duas locações principais (a vila e a morada das mulheres na floresta), Luna Nera começa grande e vai diminuindo, se tornando cada vez menos sobre aquilo que diz ser e mais sobre qualquer outra fantasia infantil produzida pela Disney direto para DVD. Com temas como “alguém ser escolhido”, sobre “o livro secreto” e “o amor impossível”, a série consegue o feito de esvaziar-se de qualquer identidade. Ela é um mosaico de clichês desavergonhados.
Há alguns sinais distorcidos de coisas que poderiam dar certo, como o papel da ciência na avaliação de fenômenos inexplicáveis para a época ou mesmo na grande revelação final, que mostra que as questões de gênero são muito mais complicadas do que as personagens imaginariam. Ade também ensaia um protagonismo diferenciado, soando mais disposta a olhar para os dois lados da moeda – o bem e o mal – do que qualquer outro personagem da trama. Tudo isso, contudo, acaba perdido em meio a tanto investimento tolo em embates mágicos e romances lamuriosos. Os impactantes últimos dez minutos de temporada não a salvam do completo esquecimento e da completa superficialidade que rege sua condução.
Planejada para ter pelo menos três temporadas, Luna Nera poderia facilmente se juntar ao grupo de cancelamentos previsíveis que rondam a Netflix; e provavelmente não haveria protestos. Se um segundo ano realmente acontecer esse é que terá sido o grande feitiço.