Malcolm & Marie/Netflix/Divulgação

Netflix

Crítica

Malcolm & Marie oscila entre intensa briga de casal e metalinguagem cansativa

Zendaya e John David Washington lavam roupa suja em filme que mais soa como desabafo de Sam Levinson

04.02.2021, às 19H51.

Após voltar para casa da celebrada pré-estreia de seu primeiro filme, Malcolm (John David Washington) fala sobre a recepção do público e da crítica, com um copo de bebida na mão e música tocando ao fundo. Enquanto o diretor dá voltas pela sala, a câmera alterna entre acompanhá-lo e focar em sua esposa, Marie (Zendaya), que fuma um cigarro na varanda, claramente com algo entalado na garganta - mas não por muito tempo. A cena não só prepara o conflito central de Malcolm & Marie, como também é a que melhor representa o filme de Sam Levinson: um vai e vem entre discutir relações amorosas e cinema.

O projeto marca apenas o terceiro longa de Levinson, e o primeiro depois do enorme sucesso de Euphoria, sua série de TV estrelada por Zendaya. O que mais impressiona, porém, é o fato de que tudo foi filmado durante a pandemia de Covid-19, com os atores e a produção em isolamento. A abordagem minimalista, que o cineasta aperfeiçoou nos episódios especiais do seriado da HBO, dá maior espaço para as performances e para o teor emocional do texto.

O diretor/roteirista faz bom uso do pouco que tem ao colocar duas pessoas problemáticas em conflito, e tentar encontrar o amor de um casal mesmo quando a primeira pedra já foi atirada. Marie critica o marido por se apropriar, em seu filme, das tragédias pessoais dela, uma ex-viciada em drogas antes mesmo dos 20 anos de idade, mas sequer agradecê-la durante seu discurso na pré-estreia. O que parece um desentendimento pequeno, um vacilo cotidiano, logo toma proporções maiores quando Malcolm entra na defensiva. Rapidamente os socos (metafóricos, claro) começam a rolar, típicos da união de personalidades muito distintas, que sabem exatamente onde aperta para machucar quando sobe a sede de sangue.

Há uma brutalidade honesta na forma como a discussão avança. Em vez de explodir de uma vez só, os participantes se mostram relutantes, mudando de cômodos para evitar o incêndio, mas logo voltando como uma nova faísca de algo não dito, um argumento recém-pensado.

Aqui fica evidente como as performances carregam o conceito nas costas. John David Washington exala sensualidade e prepotência em medidas iguais, e traz um pouco de humor pela forma como reage à própria falta de entendimento das necessidades da parceira, além de despertar desprezo ao decidir partir para chutá-la, mesmo quando já caída (de novo, de forma estritamente metafórica, por sorte). Mas quem realmente rouba toda cena em que aparece é Zendaya. A atriz não só faz parecer fácil segurar enormes monólogos e planos-sequência, como também transmite perfeitamente a relutância de alguém machucada pela vida, acostumada a ser desprezada pelos demais, mas que precisa encontrar forças para se comunicar quando algo lhe faz mal.

Em seus melhores momentos, Malcolm & Marie explora a dificuldade de comunicação quando um casal tem vocabulários tão distintos. Um internaliza as mágoas ao ponto do mal-estar, o outro fala mais do que deveria. Ambos não querem ceder. O triunfo do longa é retratar brilhantemente o quão longe duas pessoas conseguem ir nessa disputa sem esquecer que se amam.

Nos seus piores momentos, porém, o filme fica fascinado pela ideia de discutir cinema. É bem estabelecido que Malcolm é um cinéfilo, não só por profissão, mas também por paixão.

A forma como isso é demonstrado na tela até pode servir para explicitar seu maior apego à sétima arte do que à própria parceira, mas essa construção é conduzida sem sutileza alguma, de forma quase expositiva. Momentos em que o silêncio poderia ter reinado entre o casal, com cada um remoendo palavras amargas e pensando em novos ataques, são interrompidos por comentários do cineasta sobre a crítica cinematográfica, Hollywood, ou a forma errônea como as pessoas buscam mensagens no entretenimento. É possível argumentar que o propósito dessas inserções é pedir que o espectador não pense muito a fundo no filme que assiste, mas elas mais soam como desabafos de Sam Levinson.

Mesmo que o longa, nas palavras de Malcolm, peça que o público pare de tentar imaginar a intenção dos realizadores, o truque não se sustenta por ficar no caminho de uma história muito mais interessante e poderosa. Pior, chama a atenção a si próprio, levantando dúvidas sobre se é assim que Levinson percebe a arte, e se é assim que lida com a recepção crítica. Pelo menos o LA Times, alvo frequente do desgosto do personagem de John David Washington, parece acreditar nisso, já que há histórico na publicação de ter criticado País da Violência, trabalho de 2018 do cineasta, como uma tentativa rasa de comentário social.

Além disso, com Zendaya interpretando alguém com muito em comum com Rue, sua personagem em Euphoria, algumas das discussões soam muito familiares: quando ter tomado a vida de Marie como inspiração se torna o assunto central, Malcolm passa a refletir se não é um fracasso, e o que guarda sua carreira após ter obtido sucesso com a trama de uma jovem viciada. É impossível não projetar Levinson ali, e a obsessão com o assunto passa a incomodar - isso sem citar a questão racial, que o texto coloca na boca do protagonista a todo momento.

Assim como qualquer relacionamento, Malcolm & Marie é construído a partir de altos e baixos. Os picos aparecem quando demonstra um absurdo entendimento da dor, trauma, amor e humanidade. Os vales são os momentos em que se apaixona pelo som da própria voz, e acaba tentando soar mais inteligente do que realmente é. Há certa ironia em um filme que discursa tanto sobre a visão artística de um diretor/roteirista, mas que é quase inteiramente sustentado por suas atuações.

Nota do Crítico
Bom