Chegamos ao fim de 2021 com a certeza de que o kkkcry é o único estado emocional compatível com a realidade, o que explica o fato de Adam McKay prosperar não apenas na comédia de sátira, seu nicho de origem, mas cada vez mais no cinema de prestígio progressista hollywoodiano. A concentração de astros em Não Olhe para Cima atesta esse momento, num filme planejado como um grande desencargo de consciência da classe artística californiana.
Slavoj Zizek deve rolar os olhos diante de um filme como Não Olhe para Cima, ele que critica sempre a capacidade que o capitalismo tem de vender descontentamentos de volta ao consumidor como mercadorias. Aqui neste caso a mercadoria é um filme que critica a sociedade do espetáculo sem articular minimamente uma autocrítica além das piadas internas e da farsa. Faz todo sentido que McKay e a Netflix tenham se encontrado de modo feliz, porque à sátira segura do diretor se junta a eterna postura da Netflix de se ver como o outsider crítico do sistema hollywoodiano, uma autopromoção obviamente enganosa, uma vez que a Netflix se tornou já há alguns anos o próprio sistema.
Se os dois longas anteriores de McKay, A Grande Aposta (2015) e Vice (2018), apontavam sua sátira para a elite financeira e a elite política dos EUA, respectivamente, no caso de Não Olhe para Cima o alvo é mais familiar. Isso gera logo de cara uma sensação de dejá vù, que ao longo do filme se desdobra em comodismo. McKay diz ter escrito essa história - sobre cientistas que descobrem um meteoro em curso de colisão contra a Terra mas não são levados a sério por ninguém - antes da pandemia, e o timing não poderia ter sido mais perfeito, mas o fato é que a narrativa do apocalipse já está tão presente na nossa vida que tudo no filme parece só um ciclo repetido do já velho kkkcry.
Alguém já escreveu, na época da estreia de Coringa, que Todd Phillips leva vantagem como artista sobre Adam McKay porque embora ambos sejam misantropos consumados pelo menos Phillips canaliza sua misantropia como uma força caótica de criação. É possível completar que McKay talvez já tenha mostrado isso no passado - seus longas sobre o idiota americano estrelados por Will Ferrell continuam sendo os melhores - mas trocar o pastelão pela sátira “inteligente” removeu qualquer tendência do seu cinema em direção ao caos.
E o fato é que parece muito difícil fazer um filme de prestígio hollywoodiano que seja crítico das imagens, dos signos, dos nomes e dos impactos da cultura midiática americana sem um mínimo esforço de caos e autodestruição. Não faltam exemplos a se espelhar, tanto dentro de casa (Matrix Resurrections é muito mais vigoroso na sátira do que Não Olhe para Cima) quanto fora (Lars Von Trier é o caso do cineasta que Hollywood incorporou mas que ainda assim não parou de olhar o fim do mundo com um viés de autoflagelo sem piedade).
Enquanto McKay enche seu filme com cristalinas imagens documentais de metrópoles, de povos estrangeiros, do meio ambiente - o lastro globalizante obrigatório de todo filme que se leva a sério demais na crítica do estado das coisas - um longa como A Casa que Jack Construiu de Von Trier fala do apocalipse jogando tudo na feiúra da computação gráfica, das imagens falseadas, da pompa teatral irônica. Nem é preciso ir muito longe para colocar a falsa iconoclastia de Não Olhe para Cima em perspectiva; só nesta semana de Natal o espectador pode escolher, além de Não Olhe para Cima ou Matrix Resurrections, a opção de assistir no francês Annette a mais uma sátira da sociedade do espetáculo.
A diferença é que, enquanto McKay conta com tecnologia de ponta para encenar destruição no melhor estilo Roland Emmerich, e fazer um meteoro de CGI muito convincente etc., em Annette o mundo das imagens mediadas chega ao fim e recomeça no corpo desproporcional de Adam Driver e na figura feiosa de uma boneca mal articulada. É sobre a crença na imaginação e na representação de que Annette fala, uma crença que nos antecede há centenas de gerações, enquanto o mundo que está chegando ao fim em Não Olhe para Cima parece ter a idade do último Macbook.