Quando a série documental Vai Anitta foi lançada no catálogo da Netflix, em 2018, criou-se uma expectativa de que, assim como aconteceu em outros registros pop de divas como Lady Gaga, Demi Lovato e Katy Perry, Anitta fosse arriscar uma exposição menos calculada. Os episódios, apesar de adentrarem a casa da família e falarem do casamento repentino (que não teve seu fim registrado pelas câmeras), blindaram a cantora. Vai Anitta é mais um registro de uma carreira internacional, que também serviu para entendermos como funciona o processo criativo da artista, mas que ainda não a humanizava como esperávamos. Made in Honório, recém-lançado pela Netflix, é exatamente o que queríamos que Vai Anitta fosse.
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Absolutamente antenada em tudo que acontece no universo pop, Anitta não esconde que sua carreira funciona como uma colcha de retalhos, em que as referências vão se costurando, às vezes de maneira óbvia e, outras, de forma sutil. Ela reconhece o sucesso de um método que não é seu, mas vai estabelecendo detalhes que transformem a coisa toda em autoral; como quando repetiu a fórmula do vídeo de Bitch I'm Madonna em “Indecente”, mas fez isso ao vivo e cantando em espanhol. Anitta é esperta, inteligente e sabe qual é sua marca e seu público. A comparação com Madonna não é leviana. Ao contrário: é certeira.
Em 1991, quando Madonna estava no auge do sucesso, ela lançou um projeto que viria a ser mais um de seus pontapés nas convenções e na indústria do entretenimento: o documentário Na Cama com Madonna. Entre o final dos anos 1980 e começo dos 1990, Madonna era o pesadelo dos conservadores, o orgulho da comunidade GLS (sigla já obsoleta, que designava apenas Gays, Lésbicas e Simpatizantes) e confundia os críticos com um comportamento provocativo que muitas vezes eclipsava sua música. Na Cama com Madonna era quase todo ensaiado, fake, mas mostrava flashes de uma artista que trabalhava para construir uma imagem, um legado indiscutível, e que tinha um controle inacreditável de tudo. Madonna era uma obcecada com a ideia de ser a maior das estrelas e de exibir-se como nenhuma outra já fizera.
Em suas entrevistas para divulgar a série, Anitta deu declarações que pareciam reforçar que o projeto era uma tentativa de se justificar perante seu público. Entre o lançamento de Vai Anitta e este final de 2020, a vida da cantora virou um turbilhão de pressões midiáticas, com brigas e escândalos. Ela precisou ir para as redes sociais se defender das supostas chantagens do mesmo jornalista que escreveu sua “biografia” não autorizada. A situação a fez se indispor com muita gente e desgastou sua imagem. O novo documentário funcionaria como um antídoto, uma maneira de tentar fazer com que a opinião pública focasse nas únicas duas facetas que a interessam: a profissional e a familiar.
Presença de Anitta
Seria justo dizer que a nova temporada tem mais de Larissa, mas Anitta espreita como a persona que ameaça engolir a identidade da cantora, sem que ela nem mesmo se dê conta disso. Poderosa, provedora de uma família inteira (que sabia o que era a pobreza), Anitta é voluntariosa e exigente. Inevitavelmente, sua importância no seio familiar vai além do simples controle dessa chave que ela se orgulha de dizer que tem - a que liga a estrela pop e que ela desliga quando quiser. Anitta fala de como sua história começou, de como a personagem nasceu de duros traumas, e a edição de Andrucha e Pedro Waddington consegue verdadeiramente nos transmitir a ideia de superação, de “conto de fadas” sem madrinha, mas com trabalho duro e sofrimento. Contudo, Made In Honório também sinaliza problemas.
Nos primeiros minutos, Anitta já aparece dando bronca em seus funcionários. Essa será uma dinâmica que o espectador verá se repetir muitas e muitas vezes durante os seis novos episódios. Além de permitir que as câmeras entrassem mais na própria casa, ela permitiu que as câmeras registrassem – e que a edição mantivesse – toda a maneira absurdamente controladora como seus negócios são regidos. São inúmeras as vezes em que ela aparece afirmando ser a única capaz de fazer o trabalho direito. Gritos e palavrões são partes igualmente presentes dessas sequências.
O discurso de Anitta é de que ninguém é capaz de fazer o que ela precisa que seja feito. Todos são incompetentes e ela está somente permitindo que trabalhem a seu lado, a despeito da maneira voluntariosa com a qual muda de perspectivas criativas, impedindo que os outros a acompanhem.
É claro que a intenção de todas essas sequências é construir essa ideia de soberania artística, de poder pleno sobre tudo. Madonna fez o mesmo pela própria carreira - e trabalhando ao lado do irmão, do mesmo jeito que Anitta. Anos depois, Christopher Ciccone escreveu um livro de memórias que descrevia mágoas de uma vida inteira sendo “o irmão de Madonna”.
Em dado momento de Made In Honório, o irmão de Anitta, hesitante, fala sobre como às vezes é difícil trabalhar com ela, não só porque a irmã cobra muito, mas também porque ela nunca elogia. Sabemos que impérios não são construídos com gentileza, mas, uma das muitas coisas que diferencia Anitta de Madonna é que ela é acessível, amorosa com a própria família e amigos. Ainda assim, documentário revela uma faceta obsessiva preocupante, que não é problemática só por ser obsessiva, mas por ser injusta com os que a ajudaram no caminho.
O curioso é que, exatamente por causa desse retrato, a obra é mais realista. Ainda temos as desnecessárias sequências que tentam nos fazer acreditar que Anitta é espontânea e não calculista na forma como interage com os outros (dançar com os funcionários do aeroporto em frente às câmeras de um documentário não é exatamente orgânico). Mas acompanhar a relação dela com a família e com as próprias origens é realmente comovente. O que ela conseguiu fazer pelos que ama é o sonho de todos que conheceram a pobreza de perto.
Quando o show em Madureira acontece, temos material suficiente para entender o que aquilo significa para todas aquelas pessoas. É uma catarse que consegue sim, justificar e explicar Anitta. Se era isso que ela realmente queria, a missão foi cumprida com sucesso. Mais um sucesso.