Existe um charme em comum em grande parte de produções sobre pessoas prodígio. Passando pela infância problemática, a revelação de um talento único e o fardo de um dom incomum, títulos como esses adoram romantizar seus protagonistas e suas habilidades para que o público se fascine com algo além de sua capacidade. O Gambito da Rainha, nova série da Netflix que usa e abusa das fórmulas do gênero, funciona em partes. Pisando fundo em lugares-comuns, a série sobre xadrez demora a se revelar algo mais leve do que parece, e em grande parte se sustenta pelo simples magnetismo de sua protagonista vivida por Anya Taylor-Joy.
Baseado no livro homônimo de Walter Trevis, O Gambito da Rainha conta a história de Elizabeth Harmon (Taylor-Joy), uma jovem que sobrevive ao acidente de carro que resulta na morte da sua mãe, e conhece o xadrez durante sua estadia em um orfanato, revelando, desde pequena, uma habilidade fora de série. Recontando sua vida da infância até a maturidade e passando por diversos campeonatos regionais e internacionais, a série diverte o espectador mesmo com jogadas previsíveis, apostando na adrenalina bem construída das partidas de xadrez, e investindo em personagens carismáticos, como os enxadristas Harry Beltik (Harry Melling) e Benny Watts (Thomas Brodie-Sangster).
Os vacilos de O Gambito da Rainha são pontuais, mas chamativos. A série se inicia de modo certamente familiar, principalmente em cinebiografias: Beth Harmon acorda, de ressaca, atrasada para o que parece ser a partida mais importante de sua vida. Por sua introdução, entendemos que Beth é genial mas tem dificuldades claras, como o vício em tranquilizantes e abuso de álcool. Retornando ao início da sua vida logo depois, O Gambito da Rainha indica que acompanharemos a queda de Beth por suas próprias mãos. Mas não; com o desenvolvimento da série, vemos a história de uma alcoólatra funcional, que não se afunda em seus vícios até a partida em questão, e nem vive uma vida louca através dos anos. Sem a pretensão de um futuro trágico do começo, talvez O Gambito da Rainha funcionasse melhor, servindo diretamente ao seu propósito real: uma simples história de amadurecimento.
O que brilha realmente aqui é Anya Taylor-Joy, que encontra o contexto perfeito para abusar de seu olhar enigmático e sedutor, e a câmera de O Gambito da Rainha entende e tira proveito disso muito bem. Em longas partidas de xadrez, é o olhar da atriz que prende e deixa o espectador tenso. Acompanhada por uma ótima trilha sonora que passeia pela vida de Beth através dos anos 60, a série da Netflix se aperfeiçoa quando deixa Taylor-Joy dominar a tela com seu encanto. Chegando em seu fim, quando larga a mão das fórmulas tensas de histórias como essas e se aproxima do tom novelesco, O Gambito da Rainha acerta em arcos simples, focando nos complicados relacionamentos da protagonista com todos que passam por sua vida.
Enquanto o visual da protagonista serve bem à câmera de O Gambito da Rainha, vale notar que a produção da Netflix desliza nisso também. Em sua jornada ao fundo do poço através de abuso de substâncias, a série cai na armadilha de quase romantizar o vício, muito porque não sabe retratar Taylor-Joy de outro modo senão em sua perfeição. Aqui, como em tantas outras produções, nossa protagonista passa pela fase mais profunda de seus problemas mantendo a aparência - senão irretocável - estilosíssima.
O Gambito da Rainha começa e termina em lugares questionáveis, que poderiam tornar sua jornada um pouco sem pé nem cabeça, mas existe em seu miolo uma história singela protagonizada por uma ótima atriz. Mesmo com seus altos e baixos, a novela da Netflix se justifica em uma produção sólida, liderada por uma estrela de primeira.