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Netflix

Crítica

Power

Filme de superpoderosos com Jamie Foxx da Netflix se encanta com as possibilidades do FX

18.08.2020, às 18H21.
Atualizada em 18.08.2020, ÀS 18H59

O pessoal que faz filmes de ação para o streaming ainda tem muito o que aprender com a geração dos direto-para-DVD. Power chega à Netflix propondo uma descompromissada aventura de superpoderosos, embalada com os melhores retoques de saturação e cor do mercado, mas antes de se deslumbrar com as ofertas do menu de efeitos visuais alguém precisava fazer o arroz com feijão da porradaria. 

Que posição inconveniente essa de ficar repetindo sempre a mesma reza acadêmica: cinema de ação pede domínio de decupagem, de senso de espaço, de coreografia de câmera, precisa saber usar a montagem para localizar melhor o espectador. Não é difícil perceber quando um filme pulou as lições de casa; tem uma cena de Power, na saída por trás do supermercado, em que a câmera fica nos lugares mais arrojados (numa vista aérea simétrica, depois ao nível do chão etc.) e a ligação entre um plano e outro é meio aleatória ou se dá aos saltos, como se faltasse algo entre os planos. Como torcer pelo herói de ação quando não sabemos direito como ele se move, de onde levou o tiro, que fim levou seu rival.

Enfim, soa muito pedante se fixar nesses detalhes, mas eles importam, mesmo que não encantem como uma ultra câmera lenta. Encurtando o desabafo, vale dizer que Power não consegue sequer criar uma escalada digna dos seus chefões; o brutamontes que tem toda a lata de ser o último boss é eliminado precocemente com um tiro, e a luta final depois acontece com um bandido sem nome que, literalmente, saltou para dentro do filme sem nunca ter aparecido antes. Não é nem questão de saber filmar, é só vilanizar direito. Essa parte não era difícil fazer e organizando direito todo mundo briga. 

Nada contra colocar tecnocratas como os grandes vilões, afinal eles até merecem, mas as oportunidades de catarse cinematográfica ficam severamente debilitadas. Aos diretores Ariel Schulman e Henry Joost resta se espelhar nos John Wick da vida e torcer para que uns neons e muito backlight resolvam as cenas por si sós (o que eles fizeram de um jeito muito mais seguro, e propositado, no ótimo Nerve). A liberdade da classificação etária na Netflix permite que a dupla injete uma dose de violência na ação, mas o gore em Power surge como o prazer do fatality em Mortal Kombat: é um fim em si mesmo e não contribui decisivamente para tornar as lutas mais impactantes.

Na própria Netflix, o recente Bala Perdida (que tem cara de filme para DVD, daqueles com orçamento apertado que exige criatividade na encenação) é mais bem resolvido na hora de atribuir uma gravidade à ação e seus gestos. Power tem seus momentos interessantes (a cena com o "tocha humana" é a melhor porque a velocidade dos cortes, misturada à overdose de cores e texturas, oferece uma experiência sensorial que o resto do filme não consegue repetir depois) mas no geral padece do deslumbramento com as coisas resolvidas na pós-produção, e não há plasticidade que empreste verdade à ação sem peso. 

Na teoria, Power planeja injetar uma consciência social num gênero normalmente associado com a alienação política: no lugar de uma cidade-fantasia como Metrópolis ou Gotham, temos uma Nova Orleans muito real que - os diálogos na boca de Joseph Gordon-Levitt fazem questão de lembrar - não teria se reerguido depois do Katrina se dependesse das autoridades, e a representante do espectador na trama é uma garota negra (vivida por Dominique Fishback) que carrega as cores e o nome do sidekick mais famoso das histórias em quadrinhos, ninguém menos. É impagável a cara de Robin quando ela sutura os pontos em Jamie Foxx e inverte a dinâmica da menina indefesa. Power tem seus momentos. 

Na prática, porém, quando o básico não sustenta o todo, mesmo as ideias interessantes que pairam sobre o filme ficam sem estofo, soam como uma concessão de discurso "correto" num filme que no geral patina com os olhinhos brilhando pelas possibilidades dos dublês digitais e dos falsos planos-sequências.

Nota do Crítico
Regular