Aqueles que ficaram curiosos sobre quem era a personagem que a série Ratched iria retratar e foram atrás do filme Um Estranho no Ninho, se depararam com uma surpresa. Louise Fletcher, a atriz que interpretou a personagem em 1975, venceu o Oscar porque sua abordagem foi absolutamente minimalista. Ela tem poucas cenas no longa, apenas uma grande cena em que sai desse lugar de calma calculada e, para os padrões de hoje, suas maldades não são tão chocantes. Ela faz joguinhos de poder com os pacientes e seu controle sobre tudo é permitido pela direção do sanatório porque ela mantém a ordem. O mal que a personagem exala é dissimulado e o filme não se preocupa, em momento nenhum, com justificativas para ele.
De certa forma, o apelo da enfermeira Ratched está justamente nesses tons baixos. A personagem entrou para listas de grandes vilãs do século, marcou-se na cultura pop, mas fez isso sem exageros. Assim como em algumas traduções diabólicas da dramaturgia, o mal é natural, inerente; e não é coincidência que o penteado dela no filme de Milos Forman funciona como se fossem chifres. Começamos, então, com os primeiros questionamentos. Será que esse mal inevitável precisa mesmo de uma justificativa? Será que cavucar o passado de Mildred Ratched para explicar suas ações não seria o mesmo que empobrecer a personagem?
Olhando em retrospectiva, as ações de Ratched no filme de 75 não impressionam da mesma maneira que impressionaram antes. Para muitos que o assistiram no mundo moderno, foi até mesmo difícil entender todo o sucesso da personagem. Contudo, o que está estabelecido é o que vale e Ratched é um patrimônio cinematográfico. Para que uma abordagem mais profunda dela funcionasse a favor dessa mitologia, o caminho de transformação precisaria ser cuidadoso e gradativo. Em Better Call Saul, por exemplo, a espera para que Jimmy virasse Saul foi até longa demais. Mas, ninguém pode dizer que não foi coerente.
Os primeiros trailers da série Ratched já mostravam que o tom seria muito diferente. As cores fortes, a sexualização, o horror, tudo que representa a conhecida chancela de Ryan Murphy. Era evidente que uma história que se passava nos anos 40, em um hospital psiquiátrico, invocaria do showrunner os maneirismos que se imprimiram tão intensamente na antologia American Horror Story. Talvez tenha sido essa compreensível tentativa de manter-se fiel ao próprio princípio artístico que colocou Murphy do lado errado dessa adaptação. Os fãs da enfermeira Ratched procuravam pela frieza, pelo minimalismo e encontraram uma explosão de paletas e eventos bizarros, muito mais comuns a uma temporada da Horror Story.
Já que em Um Estranho No Ninho sabemos muito pouco de Mildred, os roteiros precisariam inventar um background para ela. Aí começa outro problema. Entre os dois caminhos possíveis – o mal natural e o mal absorvido – Murphy e Evan Romansky tomaram a decisão de criar um passado de traumas e horrores que justificassem o caráter flexível da personagem. Mildred (Sarah Paulson) chega para trabalhar no Lucia State Hospital com uma missão que ninguém por lá conhece: ela é irmã do assassino Edmund Tolleson (Finn Wittrock), que foi parar na instituição depois de promover um massacre de padres. Lá, ela vai fazer tudo para protegê-lo e quem sabe até libertá-lo.
Ratched Before Ratched
Em seus primeiros dias como enfermeira do Lucia State, Ratched surge fria, calculista, manipuladora, mentirosa, como se aquela fosse uma continuação de Um Estranho no Ninho e não um prequel dele. Chegamos a nos perguntar em determinado momento se não seria necessário uma Ratched antes dessa Ratched. Mais adiante, sobretudo quando Gwendolyn Briggs (Cynthia Nixon) começa a aparecer mais, Mildred já muda o tom, se torna preocupada com os pacientes, sentimental, o que faz mais sentido com a proposta de mostrar uma transformação, mas que já é incoerente com o que apareceu nos primeiros momentos da história. Alguns podem dizer que essa era Ratched sendo complexa, quando o que a coisa toda imprime é uma indecisão criativa.
Como já é típico da obra de Murphy há uma ansiedade muito grande em usar todos os recursos possíveis dentro de uma narrativa. Isso funciona algumas vezes em American Horror Story, que é uma série sobre alegoria, simbologia, muitas vezes mal interpretada por quem espera linearidade. Quando a proposta é criar um produto sobre o passado de uma personagem essencialmente dramática (e não parte das diretrizes do horror), o resultado se deforma, como se Ratched fosse só uma desculpa para mais choque, como se a personagem em si não importasse. Um exemplo disso é a lobotomia, que é uma parte importante do que vimos em Um Estranho no Ninho. Ao invés de usar a descoberta de Mildred sobre o procedimento como um clímax de sua transformação, já no episódio 2 a enfermeira está lobotomizando por aí.
É claro que nem tudo é engano na série. A abordagem da sexualidade de Ratched é muito bem conduzida, com direito a uma parceria irresistível com Cynthia Nixon, que humaniza a personagem muito mais do que qualquer outro traço inventado pelos roteiristas. Quem também faz a produção valer a pena é Betsy Bucket (Judy Davis), que se revela uma persona duas vezes mais interessante que Mildred. O Dr. Richard Hanover (Jon Jon Briones) sofre com alguns exageros, mas também funciona. Sharon Stone está em cena com um macaco nos ombros, mas ela é somente uma vitrine. Já Charlotte Wells (Sophie Okonedo), a paciente com múltiplas personalidades, é rebaixada a condutora de sequências de ação, o que é, infelizmente, redutivo.
Com uma encomenda de duas temporadas, Ratched se une a The Politician e Hollywood, as duas primeiras produções de Ryan Murphy no Netflix. Os três títulos contam com algumas qualidades, mas com problemas de recepção e muitas críticas negativas, o que só aumenta a mitologia em torno de Murphy como um contador de histórias sem controle narrativo. Curiosamente, seus últimos grandes sucessos de crítica foram Feud e American Crime Story, obras que se apoiavam em histórias reais. O talento do showrunner é inegável, mas seu mundo de distorções e referências talvez precise de uma pausa para um respiro, para um olhar introspectivo, para a autoavaliação. Pegar a Ratched minimalista e sutil e contá-la como um espetáculo de horror não foi uma ousadia calculada, foi um engano promovido pela vaidade.