A primeira temporada de Special foi ao ar em abril de 2019, dois anos atrás. A série, que tem um público-alvo bastante específico, começou discreta, com 8 episódios de apenas 15 minutos e uma divulgação quase inexistente. Embora tenha tido uma recepção positiva da crítica, a produção passou despercebida pela grande mídia, não conquistou indicações a prêmios e, com isso, não resistiu à nova política de cortes da Netflix. Meses após a estreia, Special conseguiu uma última temporada, com o mesmo número de episódios (um pouco maiores), para fechar seu enredo e se despedir apropriadamente do seu pequeno, mas apaixonado público.
O criador, Ryan O'Connell, sempre foi a essência da produção. Ele escreve e estrela a série vivendo um personagem que é totalmente baseado em suas próprias experiências. Apesar de ter começado o primeiro ano contando histórias tão curtas, ficou evidente durante essa nova leva de episódios que ele tinha muito mais a dizer. Em seu comunicado oficial sobre o cancelamento, ele falou com certa eloquência sobre o quanto a extinção da série não o faria parar de contar histórias sobre deficiência e sobre pessoas excluídas. O tom era quase direcionado à indústria e à própria Netflix, como se o destino de Special tivesse sido determinado pelo quão peculiar ela era.
E trata-se de uma série peculiar, claro. Ryan é um jovem gay, que tem um caso moderado de paralisia cerebral e precisa lidar com as complicações de uma vida que é contornável em seus aspectos práticos, mas que tem muitos desdobramentos emocionais. O humor e a linguagem de seu criador é direta, às vezes crua e, sobretudo, muito honesta. Essa é uma produção sobre um jovem gay, escrita por um jovem gay, que está ali para falar sobre o universo que conhece bem. Logo, o seriado não satisfaz a grande parcela de público procurando mais histórias heteronormativas; e até para o público gay ela não é tão comercial. O sexo não é item de venda e os romances não são construídos para satisfazer fetiches exibicionistas.
Mesmo com episódios de 30 minutos, esse é um produto relativamente barato. Nada de astros com nomes conhecidos, nada de grandes cenários ou episódios extravagantes. É impossível não fazer uma comparação com Quem Matou Sara?, que teve sua segunda temporada liberada na mesma semana que Special, com uma terceira já garantida. Elite, outro sucesso, nem estreou ainda e já foi renovada. Ambas tem um grande apelo comercial e dão muita audiência, embora seus aspectos artísticos sigam sendo questionáveis. Títulos como Special ou mesmo Feel Good, com públicos muito específicos, são sacrificadas a despeito de todo o respeito que conquistam. Bem escritas, bem dirigidas, com elencos carismáticos, apoiadas em texto, elas mereciam outras oportunidades.
Relacionamentos Abertos
Para o último ciclo de Special, Ryan O'Connell decidiu que valia a pena investir mais e mais nas relações de seu personagem. Com episódios maiores foi possível também dar à Kim (Punam Patel) e à Karen (Jessica Hetch) espaço para que suas narrativas funcionassem sozinhas. O resultado foi extremamente positivo para a série. Karen começa uma jornada para descobrir como lidar com a independência do filho e Kim provavelmente é uma das melhores personagens cômicas da atualidade. Foi importante conhecer um pouco mais de seus conflitos como uma mulher indiana inserida numa cultura norte-ameriana que é tão dependente das aparências.
De fato, boa parte da qualidade dessa temporada (e da tristeza na certeza de que ela será a última) veio dessa dinâmica de narrativas e das pitadas de humor que sempre ilustravam os coadjuvantes. Nas sequências com Olivia (Marla Mindelle), por exemplo, o aproveitamento do texto foi de 100%. A chefe de Ryan e Kim foi uma das melhores coisas desse último ano, justamente porque o aumento no tempo dos episódios proporcionou ao público mais tiradas inteligentes, mais referências pop, mais diálogos seguros, o que, em se tratando do que está disponível na televisão nos últimos anos, é precioso.
A trajetória de Ryan passeou por questões comuns tanto ao mundo de quem vive a deficiência quanto à comunidade gay contemporânea. A ideia de trazer Tanner (Max Jenkins) para ser seu interesse amoroso dentro de um contexto de relações abertas serviu para colocar o personagem diante de sua perspectiva amplificada, consistente, sem aquele ritmo picotado da temporada anterior. Relações abertas são parte cada vez maior do estilo de vida da comunidade gay e as regras e concessões feitas num relacionamento como esse são sempre polêmicas. A urgência para manter cardápios acessíveis, a problematização da monogamia, os afetos misturados ao sexo caxual... Ryan consegue tocar em tudo isso de forma honesta, sem absolver o próprio personagem de comportamentos questionáveis. Ryan está menos simpático e isso era extremamente necessário para a credibilidade da série.
Em episódios como o do baile de formatura e como o da visita de Kim até a casa dos pais, a série escancarou seu potencial. Diálogos sobre fetiche, sobre ser ativo ou passivo e até sobre Dawson's Creek, fizeram dessa segunda temporada um frescor e um prazer para todos aqueles que se dedicaram à série, mesmo depois de tanto tempo de espera. Em pouco tempo, com poucos episódios, a história de descobertas e reencontros em torno de todos os personagens, fizeram esse fim até ser menos amargo, menos frustrante. Ryan tinha uma história corajosa para contar e mesmo restrita, pequena, estranha, ela era absolutamente necessária. Special, enfim, era mesmo muito especial.