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Crítica

A Festa de Formatura

Adaptação da Broadway dirigida por Ryan Murphy é escapismo feito com política e coração

11.12.2020, às 16H46.

Há exatos dez anos atrás, em 2010, a justiça do estado do Mississippi concedia para a estudante Constance McMillen uma vitória: ela receberia o direito de levar sua namorada ao baile da escola vestindo as roupas que quisesse, mesmo que identificadas como do gênero masculino. A decisão judicial foi o fim de uma briga com a American Family Association, que conseguiu provocar o cancelamento do baile do Itawamba High School, depois que Constance anunciou que iria acompanhada de uma menina. Após a derrota, a associação divulgou uma nota que acusava os envolvidos na defesa de Constance de estarem tentando “normalizar comportamento sexual aberrativo”

The Prom, o musical, estreou em Atlanta 6 anos depois; e mais tarde, em 2018, chegou até a Broadway. A história de Constance havia sido ficcionalizada, mas os resquícios de fantasia propostos pela trama não estavam tão distantes assim da realidade. Celebridades se envolveram na campanha para que a menina tivesse seu baile e mesmo uma semana antes da decisão judicial, Constance foi convidada do programa de Ellen Degeneres, ganhou uma bolsa de estudos e uma nova onda de fervorosos apoiadores. A escola cedeu e anunciou um baile "inclusivo". Constance, a namorada e dois estudantes com deficiências físicas chegaram ao local e estranharam a quantidade mínima de pessoas. No dia seguinte, a menina descobriu, em choque, que foi mandada para um baile fake e que todos os outros estudantes estavam festejando em um outro baile, que foi mantido em segredo dela e dos alunos deficientes. A vida de Constance não ficava devendo nada para a ficção. 

É importante estabelecer essa ligação porque o nome de Ryan Murphy nos créditos da adaptação lançada na Netflix, A Festa de Formatura, trabalha mais contra ele do que a favor. A onda de aprovação que fez Glee vencer dois Globos de Ouro bem na época em que Constance vivia seu turbilhão, ficou para trás. Nos dias de hoje, o trabalho de Ryan é encarado com severidade e – em alguns casos – cinismo. Apesar das piruetas narrativas de títulos como American Horror Story, o mundo de Murphy é regido por uma base muito específica: o otimismo. Ainda que pessoas sejam mutiladas ou que o erotismo seja sinestésico, no final das contas, Murphy não resiste ao final feliz. Como cria da crueldade no ambiente escolar americano, ele persegue a superação em tudo que faz, até hoje.

Era absolutamente natural que a adaptação do sucesso da Broadway caísse em suas mãos. The Prom tem todos os elementos que estão no DNA de Ryan: a diversidade, a narrativa sobre tolerância, a linguagem musical, divas hollywoodianas no centro dos holofotes e o inevitável final feliz. As histórias que ele conta se comunicam com uma América democrata, tentam sensibilizar o pensamento conservador (que está em plena ascensão), mas se estendem até o backstage. The Prom é só mais um dos títulos que hospedam membros da Half Initiative, fundação criada por ele que promove inclusão entre profissionais do entretenimento.

Temos todas essas informações em pauta, mas será que A Festa de Formatura funciona sozinho, somente enquanto peça cinematográfica? A história do filme, ainda que baseada em um fato real, não tem nenhuma intenção de reinventar a roda. O que aconteceu com Constance McMillen, ao passar pelo filtro hollywoodiano, recebe a mesma carga clássica dos filmes do gênero. Já sabemos que tudo vai dar certo, já sabemos que os maus vão se redimir, mas é disso que estamos indo atrás quando nos sentamos na poltrona para ver um filme como esse. O timing de The Prom não poderia ser mais acertado. Em 2020, tudo que o público mais precisa é de escapismo.

A PROMessa

Para garantir que o público tenha somente muita diversão, o quarteto de fracassados da Broadway que viaja para ajudar a menina que teve o baile cancelado foi construído com exagero e afetação, do jeito que acontece com todas as comédias musicais mais famosas do mercado. Comédia é um gênero que manipula estereótipos; o papel do roteiro e da direção é revelar aquela centelha de emoção verdadeira, aquele olhar de humanidade que enxuga o colorido e o glitter, para surpreender a audiência quando consegue se relacionar com ela. O sucesso de The Prom (não perante a indústria, mas perante o público) depende disso.

A história de Emma (Jo Ellen Pellman) é exatamente a mesma de Constance, mas as mazelas vividas por sua amada são adicionadas como contraponto. Alyssa (Ariana DeBose), a namorada convidada para o baile, é filha da mulher por trás da perseguição a Emma, uma conservadora extremada, vivida por Kerry Washington, já uma das escolhas estratégicas de Murphy. Kerry provavelmente não seria o primeiro nome que um diretor pensaria para viver uma mulher com posições como aquelas. O mesmo acontece com James Corden, que tem o segundo maior papel do longa. James vive Barry, parceiro de cena e amigo de Dee Dee Allen (Meryl Streep). Depois do fracasso de Cats, Corden buscava por redenção e acabou entregando bons números musicais, assim como uma interpretação honesta de um narcisista da Broadway que reencontra a própria história quando chega em Indiana.

Meryl Streep pode ter sido a escolha mais óbvia para viver Dee Dee, mas o inevitável volta a acontecer e ela brilha mais forte e intensamente que qualquer outro. O ótimo trabalho de arranjos vocais de Adam Anders (que fez toda a mágica musical de Glee) ajudou todos os atores, mas com Meryl o resultado foi realmente primoroso. Murphy é conhecido também por saber aproveitar suas atrizes mais maduras e não desperdiçou a presença de sua grande estrela. Meryl (que foi uma das primeiras pessoas que Murphy entrevistou quando era jornalista, antes da fama) aparece em muitas cenas, mas te faz querer que ela não estivesse fora de nenhuma. Ali por perto, os personagens secundários defendidos por Nicole Kidman e Keegan Michael-Key mantém a unidade do elenco.

Tecnicamente, The Prom é um musical em essência. As canções costuram a história e acontecem nos lugares e momentos mais diversos. As ótimas letras de Matthew Sklar mantém o humor do roteiro de Chad Beguelin e Bob Martin. Depois de anos envolvido com Glee, Murphy sabe o que é ter senso de espetáculo e quando o colorido, as canções e a coreografia impecável se reúnem em grandiosos números coletivos, The Prom se candidata de verdade a passar pelo crivo da audiência. Estamos falando de uma história real que é completamente fantasiosa, com soluções de última hora e redenções repentinas. Mas, ao mesmo tempo, alguns dos melhores filmes das nossas vidas são aqueles que só tem um propósito: nos divertir.

A arte foi a principal responsável por tornar essa pandemia menos dolorida para todos e ainda que os prêmios e o reconhecimento da crítica façam parte das regras do jogo, The Prom foi feito para ser o local de fuga, para se comunicar com o coração. É isso que diz, inclusive, uma das canções mais bonitas do filme, que revelam um momento muito terno entre Tom e Dee Dee. Cansada de fracassar, cansada das péssimas críticas, Dee Dee pensa em desistir. Tom, o espectador ideal para um filme como esse, então, canta para ela; “Por favor não desista; e isso eu posso garantir: da próxima vez que você pensar que ninguém se importa, você pode olhar pra mim”.

Nota do Crítico
Ótimo