O motivo que levou o filme Enola Holmes a ser processado pelo espólio de Arthur Conan Doyle, o criador de Sherlock Holmes, é nada menos que o fato de o maior detetive do mundo ter... sentimentos. Os livros de Sherlock que Doyle escreveu entre 1923 e 1927, depois do impacto emocional da Primeira Guerra Mundial, descrevem um Sherlock mais simpático e continuam protegidos por direitos autorais no Reino Unido. O único Sherlock em domínio público - que Enola Holmes poderia usar de graça - é aquele anterior à guerra, o detetive insensível e superanalítico. (Os mistérios das leis de copyright dariam em si um filme bem curioso.)
O caso é que Sherlock Holmes surge vivido por Henry Cavill no filme estrelado por Millie Bobby Brown de um jeito diferente do que estamos acostumados. Primeiro, ele não usa seu chapéu característico, nem vive com o cachimbo na mão - esse elemento entra como um easter egg pelas mãos de Helena Bonham Carter, que interpreta a mãe dos Holmes no filme. Durante a visita ao set que o Omelete fez em 2019, todos repetiam que o Sherlock de Cavill é sensivelmente mais amável. "Na cena inicial, Sherlock ainda está muito reservado diante da irmã caçula, mas ao longo do filme ele se abre, e Henry deixa clara essa evolução em cena", diz a produtora Ali Mendes.
Essa abertura é pensada para criar um Sherlock que talvez não seja tão seguro emocionalmente, o que traz novidades ao clássico personagem. "O público consegue ler a mente dos personagens, então buscar as contradições os aprofunda. As pessoas se mostram mais em situações de estresse e desafio, e Enola força Sherlock a se mostrar mais. Com os movimentos de câmera nós tentamos colocar o espectador no ponto de vista desses personagens, e talvez nesse ponto o filme se aproxime um pouco de Killing Eve, onde usamos bastante a câmera assim”, diz o diretor Harry Bradbeer, que dirigiu Enola Holmes depois de assinar dois episódios de Killing Eve e a maioria de Fleabag.
Ainda de acordo com o diretor, o desenvolvimento emocional de Sherlock é necessário como contraponto à perspectiva feminina. "É interessante porque Sherlock era visto como um personagem misógino que só conseguia nutrir afeto por uma mulher", diz Bradbeer em referência a Irene Adler nos livros. "Aqui nós lidamos com o legado de Sherlock pelo olhar da irmã, e isso força Sherlock a ter um elo emocional com alguém. São dois personagens estranhos entre si, eles se reencontram depois de dez anos, e ambos lidam com a dificuldade de perder a mãe."
Para Henry Cavill, o que une Sherlock e Enola é o jeito de pensar. "Não só a genialidade, mas também a mente aberta, a capacidade de pensar fora da caixa", diz o ator, que no set montado para servir de residência da família Holmes transita com o cabelo encaracolado levemente desgrenhado, e com camisa e colete mais soltos que o arrumadinho Mycroft, interpretado por Sam Claflin. Se o cachimbo é símbolo de hombridade, então Mycroft realmente se coloca como o homem da casa; na cena que o Omelete viu rodada no set, com os três irmãos reunidos na biblioteca, Claflin bafora a fumaça do fumo a cada tomada, fazendo gestos cerimoniosos, enquanto Cavill incorpora o tipo misterioso e desconfiado, sempre de cenho franzido.
"Como são um jovem Mycroft e um jovem Sherlock, isso dá liberdade pra gente criar algo mais leve sem recorrer ao que foi feito antes. O que me ajudou a achar meu Mycroft foi o figurino, gosto de procurar o personagem nesse desconforto do que ele veste, e nem sempre isso é possível", diz Claflin. Para ele, a insensibilidade pode ser explicada na relação familiar: "Enola não sente amor vindo de Mycroft, que é como ele e Sherlock se sentiam na relação deles com o pai. É por isso que Mycroft, que faz o provedor da família, age como age. E ele inveja o sucesso do irmão e gosta do desafio, então muito da fricção vem daí".
Cavill não entende seu personagem, necessariamente, como um Sherlock de coração aberto. "Sherlock é o filhinho da mamãe, é o oposto de Mycroft. Ele fugiu da escola, o pai o forçou a voltar. Então é tudo isso que o faz ter mais empatia com Enola. Não vemos uma relação profunda de Sherlock com ninguém. É mais um lado fraternal, ele se identifica com ela. Nós vemos os paralelos da inteligência de Enola e de seu irmão, mas o poder de dedução de Sherlock só vai até certo ponto. A história é de Enola", diz o ator.
Netflix/Divulgação
No set, Bradbeer dá instruções pontuais aos atores, sobre como mudar uma ou outra fala, com diferentes pausas e reforços, e o diretor parece bem focado em relação ao que procura a cada tomada. Já com o elenco o clima é de descontração; como uma boa adolescente, Millie fica se mexendo e fazendo brincadeiras entre um take e outro, segurando-se para não rir na dinâmica caricata e nervosa com a senhorita Harrison (Fiona Shaw) e com Mycroft. "Sam consegue ir e volta ao personagem muito rápido! Eu preciso de pelo menos uns cinco minutos depois de rir muito para poder me concentrar e voltar à personagem. E ele me faz rir o tempo todo no set", diz Millie sobre Claflin.
Nesse contexto, Fiona Shaw fica mais do que à vontade, assistindo à dinâmica dos irmãos e fazendo mais um papel de megera - do qual ela parece extrair sempre um prazer sádico, como quando fez a tia Petúnia em Harry Potter. "A escola para garotas no filme é bem cruel, parece uma mistura de Harry Potter com Charles Dickens, foi muito divertido de ver", diz a atriz no set, sempre com energia e um sorriso malicioso no rosto. Ela já havia trabalhado com Bradbeer em Killing Eve e Fleabag, e diz que foi o diretor que a atraiu ao filme: "Ele é sempre muito claro no que quer, se responsabiliza por tudo no set, e isso é muito tranquilizador. Além disso, muitos diretores não entendem o texto, as pequenas variações na atuação, e ele entende isso".
Shaw finaliza fazendo um balanço das histórias juvenis de que participa. "É interessante ver onde os filmes de adolescentes estão hoje, porque já faz dez anos que Harry Potter terminou, e parece que a agenda de interesses dos jovens mudou nesse tempo. De qualquer forma, Enola é diferente", diz.