Ainda que seja um ano trágico para as salas de exibição, 2020 não foi perdido na produção audiovisual, que inclusive permitiu nos meios digitais que muitos festivais chegassem a mais pessoas, de forma frequentemente gratuita. Sem a possibilidade de ir ao cinema, a pandemia fez os holofotes se virarem para os streamings, e muita coisa pode ter passado batido nos catálogos dos serviços mais populares, especialmente os filmes feitos fora de Hollywood. Na lista abaixo, pegamos oito filmes dentre os melhores que a Netflix lançou em 2020 e que talvez tenham passado abaixo do seu radar.
O que Ficou para Trás
Netflix/Divulgação
Um sinal dos tempos é que o gênero do terror prospera no cinema mundial para dar conta de um mal-estar generalizado. Neste primeiro longa do roteirista e diretor inglês Remi Weekes, o cinema de horror se presta a lidar com o drama dos refugiados de guerra, e a história acompanha um casal do Sudão que chega à Inglaterra e não consegue se emancipar do seu passado de tragédias recentes. Weekes inverte a lógica dos filmes de casa mal-assombrada: aqui, são os protagonistas que carregam dentro de si as assombrações. O que Ficou para Trás faz o básico e também tem algo a mais: sabe trazer para dentro do gênero as sensibilidades da cultura africana (central para definir a dinâmica entre os vivos e os mortos no filme) e ainda manda um par de ótimos sustos para acompanhar.
Secreto e Proibido
Netflix/Divulgação
Além das obras de ficção de Ryan Murphy, a Netflix tem em seu catálogo dois documentários sobre história e cultura gay com a assinatura do produtor, Secreto e Proibido e Atrás da Estante. Embora trate de uma história bem comovente (a relação de duas mulheres nos EUA que por sete décadas tiveram que esconder sua homossexualidade), Secreto e Proibido acaba se revelando bem interessante também por aquilo que revela de dinâmicas familiares e do paternalismo com a terceira idade. Que o casal Terry e Pat seja tratado como uma unidade disfuncional (nas intervenções da família para o bem de "Tia Terry") só depois das duas assumirem a relação gay é uma daquelas ironias da vida que, registrada na tela, ganha uma dimensão dramática singular.
A Ligação
Netflix/Divulgação
O trabalho de Lee Chung-hyun poderia ser só mais um suspense sul-coreano sobre jogo de gato e rato com assassinos em série, não fosse sua premissa, uma espécie de A Casa do Lago do mal. Tanto a fantasia de viagem no tempo quanto as reviravoltas policiais estão a serviço de um conto moral bem definido e bem conhecido, sobre a nossa responsabilidade com as decisões que tomamos na vida, mas a viagem tresloucada que Lee sugere para chegar lá é o que torna A Ligação bem irresistível.
The Forty-Year Old Version
Netflix/Divulgação
A premissa por si só já parece irresistível: depois de ganhar um prêmio de dramaturga promissora aos 30 anos, Radha Blank chega aos 40 sem decolar profissionalmente, e ela então decide fazer um filme - sua estreia como diretora - em torno dessa crise. A escolha pela fotografia em preto-e-branco e pela autobiografia confessional alinham o filme a uma certa tradição do cinema americano de prestígio, mas Blank escapa da armadilha da pompa ao colocar muito vigorosamente o rap no centro da ação. É por meio da música, do improviso e da energia criativa que ela transforma o filme numa válvula de escape de frustrações e também numa peça de resistência, contra as forças que diluem e se apropriam do discurso negro para perpetuar seu poder político, econômico e social.
Lost Girls
Netflix/Divulgação
Os órfãos de Mindhunter podem ter neste filme inspirado em fatos, sobre a morte de seis mulheres na região de Long Island, um substituto digno. O filme dirigido por Liz Garbus visivelmente paga tributo a David Fincher nas suas escolhas de fotografia - cujos tons esverdeados ressaltam a morbidez - e de exploração psicológica. Lost Girls não é um marco do gênero, mas entrega um thriller decente com um bem-vindo ponto de vista feminino e corajosas escolhas de anti-clímax, tudo encabeçado pela sempre sólida atuação da atriz Amy Ryan.
As Mortes de Dick Johnson
Netflix/Divulgação
Um dos documentários mais elogiados de 2020, o filme da diretora Kirsten Johnson acompanha o drama pessoal do seu pai, que depois de perder a esposa com Alzheimer também desenvolve a doença. A “solução” encontrada pela filha para aliviar a dor da família é então registrar em filme os últimos anos da memória de Dick Johnson, ao mesmo tempo em que encena de brincadeira as tais mortes do pai, para desarmar a seriedade do luto antecipado. Tese e prática se encontram em momentos muito potentes: no papel essa elegia dos ritos de passagem já soa emocionante, e na prática, quando o luto é vivido mesmo em cena, ela se mostra realmente comovente. Um triunfo da capacidade de enfrentar a morte de frente.
Ya no Estoy Aquí
Netflix/Divulgação
Ulisses é o correlato mexicano do adolescente brasileiro que se expressa pelo passinho e faz dessa subcultura uma filosofia de vida. Como seu próprio nome já sugere, ele protagoniza uma viagem homérica, no caso uma travessia ilegal aos EUA que o deixa vulnerável em território estrangeiro. O filme de Fernando Frías de la Parra consegue oxigenar a história batida do imigrante com uma narrativa visual bem marcante, cuja estrutura não-linear exige que o público atente para as cores e formas do protagonista e seu entorno para acompanhar essa odisseia pivete sobre identidade, geografia, apagamento cultural e resistência.
Crip Camp
O documentário americano se vende como a história pouco conhecida de um acampamento de férias nos EUA voltado para pessoas com necessidades especiais, mas esse é só o primeiro ato. A partir de uma temporada no Camp Jened nos anos 1960, personagens variados (de paraplégicos a pessoas com danos cerebrais mais severos) passam a protagonizar o movimento pelos direitos civis dos cadeirantes, que se estende por décadas no país. No fim, o filme acaba construindo um relato muito poderoso e emocional sobre a força da coletividade, sobre como reconhecer-se em outras pessoas e humanizá-las é um meio importante de transformar a alteridade em cidadania.