Vou tirar logo do caminho o que muitos acreditam ser o mais importante aqui: sim, Manhãs de Setembro é mais um retrato ficcional da vida e do cotidiano de uma mulher trans. Mas ao contrário de muitas outras obras, inclusive algumas que recebem elogios exacerbados — imagino eu, pelo fato de simplesmente terem sido feitas — como Transparent ou Transámerica, a nova série brasileira da Amazon Prime Video vai muito além do “papel de embrulho nas cores do arco-íris”.
Cassandra (vivida por Liniker) é uma jovem determinada e em busca de realizar sonhos na capital paulista. Na superfície, tudo vai bem. O aluguel de uma quitinete é aprovado, o romance com seu namorado vai ficando sério, e seus melhores amigos lhe dão conselhos e um palco para chamar de seu. É na boate do casal Aristides (Gero Camilo) e Décio (Paulo Miklos) onde ela se realiza e canta, assim como Vanusa - musa inspiradora, cuja canção “Manhãs de Setembro” inspira a personagem a buscar mais da sua vida (e, de quebra, ainda dá título à produção).
Mas tudo muda com a chegada de Leide (Karine Telles), a mulher com quem Cassandra se envolvia antes da transição, uma sem-teto que vive como camelô e mora num carro velho. Além do antigo relacionamento, a protagonista logo descobre que ambas dividem algo a mais: a responsabilidade de um filho, o Gersinho (Gustavo Coelho), cuja existência nem passava pela cabeça de Cassandra.
Prestes a completar 10 anos, o menino só queria conhecer seu verdadeiro pai. Por isso, Leide bate à porta de sua ex - ou não só por isso, mas também para buscar a sua liberdade, a possibilidade de viver sem tanto peso sobre os ombros, tal como Cassandra. É nesse conflito que se concentra a verdadeira história de Manhãs de Setembro. Ao mostrar duas formas de maternidade, a série deixa de lado a obrigação de ser um retrato de representatividade, embora faça isso de forma autêntica e muito otimista.
Veja só, temos duas mulheres que só querem viver livres. Leide não teve a chance, porque estava cuidando de um filho. E Cassandra, embora sem saber da existência da criança, não teve chance porque carregava nos ombros o preconceito e as dificuldades de ser uma mulher preta, pobre e trans no país que mais mata pessoas como ela. E mesmo rejeitando inicialmente a figura de Gersinho, a protagonista logo se desdobra e começa a mostrar afeto à “novidade” - um gesto nítido de instinto materno.
Nada acontece repentinamente na história contada por Josefina Trotta, Alice Marcone e Marcelo Montenegro, roteiristas da produção. Mesmo com pouco tempo em mãos (são apenas 5 episódios de meia hora cada, praticamente um filme), temos personagens bem definidos, cujas semelhanças com a nossa realidade fazem com que todos os erros, justificativas e escolhas de Cassandra e/ou Leide sejam coerentes e aprumadas.
Parecia ser um caminho muito fácil para que o retrato sobre uma pequena parcela da comunidade LGBT, situação de risco ou pobreza fossem transformadas em uma "lacrada", mas a produção dá uma meia volta e, na verdade, acaba mostrando uma história sobre família e acolhimento. Embora seja a primeira protagonista de Liniker, sua atuação traz muita credibilidade para uma personagem que poderia facilmente cair na antipatia, quase como uma anti-heroína.
Isso porque não vou nem mencionar as cenas em que Cassandra solta a voz nos palcos, porque seria chover no molhado - mas, como atriz, ela convence muito. Já o elenco de apoio, com destaque para Thomaz Aquino (que vive Ivaldo, namorado de Cassandra), também cumpre o papel para fazer a história funcionar, e nos fazer enxergar o que realmente importa na produção: a felicidade que é encontrar uma fortaleza nas pessoas ao nosso lado, mesmo que tenham aparecido de surpresa.