Assim como os caminhos que se encontram na encruzilhada, a série The Underground Railroad caiu bem no vértice de duas pautas de debate: a das séries de TV que “parecem cinema” e a das narrativas de reparação histórica sobre os negros dos EUA que flertam com a exploração do sofrimento. À primeira vista, por conta desse cruzamento, parece que The Underground Railroad - recém-lançada pelo Amazon Prime Video - será a típica série do ame ou deteste.
A base é o romance homônimo de Colson Whitehead que se tornou uma unanimidade em premiações quando saiu em 2016. A adaptação em dez episódios dirigida por Barry Jenkins é bastante fiel à trama do livro: em meados do século 19, acompanhamos a escrava fugitiva Cora (vivida pela sul-africana Thuso Mbedu), que usa a ferrovia subterrânea do título para tentar se assentar em lugares diferentes do Sudeste dos EUA, tendo sempre um caçador de recompensas (Joel Edgerton) em seu encalço. Transcorrem os anos que antecedem a Guerra Civil, então o território sulista se mostra especialmente sinistro na sua oferta de ameaças contra a orfã Cora.
No livro, Whitehead aproveita um elemento verídico - a rede de transporte e abrigo que abolicionistas usavam na época para ajudar escravos em fuga, que não era uma “railroad” de verdade - para conceber uma fictícia estrutura de túneis e trilhos, uma ferrovia subterrânea literalmente (em inglês, “underground”, subterrâneo, pode significar apenas “clandestino”, e a tecnologia para criar ferrovias debaixo da terra de fato só foi empregada no país a partir de 1863). Ou seja, a narrativa trata o nome da Underground Railroad ao pé da letra e parte de uma licença poética que a aproxima do realismo mágico - e Jenkins se aproveita disso para conceber a série e impor um caráter onírico, e de pesadelo.
O primeiro episódio é o mais pesado, como já avisam os créditos iniciais, e mostra a violência frontalmente para que ela se instale no espectador e o acompanhe, como espectro e trauma, pelos nove episódios seguintes. Aí entra o debate da exploração e do sadismo - que ganhou força recentemente com outra produção da Amazon sobre racismo, a série Them - e Barry Jenkins parece plenamente consciente dos gatilhos que sua série tende a provocar. Ele filma um escravo sendo chicoteado e depois incendiado, e por mais que a câmera busque constantemente se ofuscar no contraluz do Sol para “desver” as violências, esse debate não se invalida (um plano de um chicoteamento, enquadrado como tableau vivant, com dois capatazes nos cantos do enquadramento, pode ser criticado por ser mais estetizado, “prazeroso”).
Essa questão da estetização se impõe não apenas na fotografia, mas também a partir do momento em que The Underground Railroad adota uma cadência mais de cinema “de arte”, paciente, contemplativa e quase lacunar. Isso se nota principalmente a partir do quarto episódio. Antes, os três primeiros passam uma impressão momentânea de que a série se aproxima do formato de antologia, porque o segundo tem um clima de terror de paranoia à moda Jordan Peele, e o terceiro lembra um suspense de claustrofobia, evocando Anne Frank e o Holocausto. Fazendo a transição entre uma situação e outra estaria a própria ferrovia, cuja locomotiva usada por Cora tem uma carga latente de sobrenatural, como o barco mitológico que conduz os mortos no submundo de Hades.
Ainda que esse elemento mágico volte ocasionalmente - às vezes como uma fantasia dickensiana, industrial, com suas crianças tiradas precocemente da infância - a série não investe nele por completo. Nos seus dois terços finais, The Underground Railroad toma a forma mais claramente de um épico sulista linear, à medida em que se aproxima do fim a perseguição por Cora. De qualquer forma, a “cara de cinema”, impressa sempre nos tempos mortos e na busca por uma narrativa de imersão sensorial, dá o tom da série, e então Jenkins troca Charles Dickens pelo épicos rurais de Terrence Malick, particularmente na gravidade religiosa que a contemplação adquire quando investiga o divino no mundo material.
Barry Jenkins vem de uma carreira breve mas premiada no cinema, e principalmente depois de Moonlight (2016) e Se a Rua Beale Falasse (2018) já é possível divisar uma assinatura visual em seus trabalhos, que ele reforça aqui. The Underground Railroad funciona como um longa-metragem (bem) dilatado, e como tal é preciso chegar ao desfecho para julgar a pertinência e o impacto de decisões tomadas no princípio, no primeiro ato. Para além das reações iniciais, o que fica de The Underground Railroad é um senso de assombro que tende a perdurar com o espectador depois do fim da série. Conhecemos com Cora todos os matizes da morte, as metafóricas e as factuais, e parece inegável que esses dez episódios chegam, sim, a consolidar uma noção de vida vivida até o limite - uma noção de épico que faça justiça a essa palavra.