Ao explorar o medo, o horror sempre foi uma poderosa ferramenta para comentários sociais. Os cineastas negros entenderam isso muito bem e, nos últimos anos, mais e mais obras do gênero levantam discussões sobre identidade, história e racismo atrelados ao sobrenatural. Them, antologia do Amazon Prime Video, é o mais recente exemplo dessa safra, e também o mais extremo.
O projeto, criado por Little Marvin, é pensado para ser como American Horror Story, com cada temporada trazendo uma nova trama sobre injustiça racial nos Estados Unidos. A primeira acompanha uma família negra que, em 1953, se muda da Carolina do Norte, onde são vigentes as leis segregacionistas de Jim Crow, para a cidade de Compton, na Califórnia, em busca de uma vida melhor. Ao chegarem ao novo bairro, inteiramente branco, eles logo percebem que vão precisar lutar para sobreviver - especialmente quando assombrações passam a se manifestar em seu lar.
Dentro da proposta da série, o período da ambientação é bastante rico, ainda mais para o público de fora dos Estados Unidos, que conhece a tradicional imagem do subúrbio estadunidense, mas não do preço por trás do “Sonho Americano”. Them preenche essa lacuna e, ao longo de 10 episódios, mostra o preconceito racial em todo o seu infeliz alcance: a repulsa dos vizinhos, os racistas capazes de mobilizar os demais para seus objetivos nefastos, e também como muito dessa tensão foi fomentada por políticas públicas.
Em seus melhores momentos, a série destrincha aspectos do preconceito estrutural, como o infame “Redlining”, técnica de segregação urbana e endividamento para famílias negras, praticadas por prefeituras e bancos, que molda grande parte das metrópoles norte-americanas até os dias de hoje. É especialmente poderoso que uma trama desse tipo aconteça em Compton. Por nomes como Dr. Dre e Kendrick Lamar, a cidade se tornou um dos mais importantes centros da cultura negra nos EUA. A série vem então para lembrar que nem sempre foi assim, e que cada pequeno espaço foi conquistado com muita dor e sangue.
A abordagem explícita e apelativa de Them é o que torna as coisas lamentáveis. O programa propõe investigar o passado da injustiça racial nos Estados Unidos, e as consequências e cicatrizes que deixam nas suas vítimas e seus descendentes, mas tudo isso é conduzido de uma forma, no mínimo, perturbadora.. Ao longo de dez episódios, a série é repleta de todo tipo de demonstração de crime de ódio, do vocabulário carregado de ofensas, às retratações racistas como blackface, e até gráficas cenas de tortura e violência física.
Frequentemente os espectadores modernos não levam em conta como atrocidades do tipo eram tratadas como mundanas. Linchamentos de negros no sul do país, por exemplo, eram vistos como eventos de família, com mães e filhos assistindo aos risos enforcamentos, multilações e fogueiras. Toda produção que vá lidar com a temática caminha na corda bamba entre conscientizar e chocar. Aqui, o seriado beira o sadismo e mergulha de cabeça no impacto, ao ponto de que assisti-lo se torna uma tarefa de embrulhar o estômago. Quando um dos momentos-chave da trama envolve uma personagem ser abusada sexualmente enquanto seu filho bebê é espancado, é preciso se questionar se a série não passou dos limites. Há avisos de gatilhos no início dos episódios, que pedem que o público vá atrás de entrevistas dos criadores para entender as verdadeiras intenções por trás de tudo mostrado na tela. Se é necessário tantas explicações da produção, algo não está certo.
Salvo por algumas explicações nos dois episódios finais, o elemento sobrenatural soa até deslocado em meio à overdose de agressão. Enquanto há uma óbvia conexão entre as assombrações, os traumas dos personagens e as injustiças socialmente não resolvidas, a trama principal já funciona pelo viés da família se tornar cada vez mais afetada psicologicamente por toda a violência vivenciada. A conclusão também não ajuda ao não oferecer nada além de uma eterna busca pela sobrevivência.. Sem qualquer tipo de catarse, argumento ou reflexão após ficar de frente com o macabro, o horror aqui é apenas estético.
Apesar de um ótimo elenco e excelente direção, Them tropeça na própria noção de importância ao confundir exagero com ousadia, e entrega algo que não fica a altura do potencial que tem nas mãos. Os crimes e injustiças cometidos contra os negros, nos Estados Unidos e no mundo, nunca devem ser esquecidos ou perdoados, mas as produções modernas precisam ir além da tentativa de chocar através de representações gráficas.
Talvez o timing também não ajude. A série foi colocada em desenvolvimento logo em 2018, com duas temporadas garantidas logo de cara, mas demorou até enfim chegar às telas. Neste tempo, obras como os filmes de Jordan Peele e séries como Lovecraft Country demonstraram que, sim, é possível fazer horror com consciência racial e que gera indignação, mas sem deixar de contar boas histórias, e sem exagerar na dose do que é grotesco.